É tradicional no Carnaval brasileiro o tratamento VIP dado por empresas privadas a autoridades do governo. Passagens aéreas, hotéis, verdadeiros banquetes e os melhores lugares no Sambódromo há anos são privilégio de quem ocupa altos cargos oficiais.
Parece que a festa acabou. Ano passado, a Comissão Brasileira de Ética Pública proibiu que autoridades governamentais aceitassem esse tipo de presentes de empresas privadas que tenham algum interesse nas políticas ou compras do governo. No entender da Comissão, tais benesses geram um potencial conflito de interesses.
A regra criou confusão. “As autoridades já tinham sido convidadas e foram desconvidadas”, relembra o presidente da Comissão, João Geraldo Piquet Carneiro, em seminário realizado na sede do BID em março passado. Muita gente importante não gostou. Mas o público em geral vibrou: uma pesquisa de opinião feita por um jornal mostrou que a medida da Comissão teve um índice de aprovação de 98%.
“Os brasileiros adoram Carnaval”, disse Piquet, “mas não gostam de ver suas autoridades públicas receber tratamento especial.”
Nem todas as medidas da Comissão têm tanta repercussão. No entanto, apesar de só ter sido criada em 1999, a Comissão já conseguiu transformar a cultura oficial nos mais altos escalões do funcionalismo público brasileiro. Atraiu atenção internacional, inclusive, por sua abordagem pouco ortodoxa ao combate de uma das piores ameaças a um governo eficiente e eqüitativo na América Latina e no Caribe.
A iniciativa brasileira conseguiu apoio também do BID, cuja Diretoria Executiva no mês que vem examinará a concessão de um empréstimo no valor de US$6 milhões para fortalecer a Comissão, estender seu código de conduta a todos os 193 órgãos do Executivo federal e estudar a viabilidade de implantar algo semelhante em outros países (ver link à direita sobre o perfil do projeto). “Este será o primeiro empréstimo do BID para inovação concedido em apoio da ética no setor público”, diz Betty Rice, chefe de equipe do BID para o projeto.
De normas a ação. A criação da Comissão de Ética Pública é fruto de uma série de tentativas de reforma realizadas em nível governamental desde 1935, segundo Piquet Carneiro. “Um país das dimensões e complexidade do Brasil não pode ter um governo ineficiente”, afirma. Apesar de inúmeros problemas, inclusive o período em que o Brasil foi governado por ditaduras militares, Piquet julga que houve grandes avanços no sentido de elevar a eficiência e eliminar a corrupção. E cita como exemplos as contribuições de instituições sólidas como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social e o Banco do Brasil.
Os esforços de reforma se aceleraram após o impeachment do Presidente Fernando Collor em 1992 por corrupção, diz Carneiro. A partir daí, a preocupação do público com o governo foi além da questão da eficiência e passou a se concentrar mais na corrupção e na ética.
Mas os problemas persistiram. Apesar de diversas medidas aprovadas e da criação de novos órgãos e comissões anticorrupção, não havia nenhum mecanismo eficaz para informar as autoridades públicas sobre suas responsabilidades e traduzir normas em resultados.
Adotando uma tática diferente, o governo Fernando Henrique Cardoso decidiu dar menos ênfase a regras e sanções drásticas. Em vez disso, a meta da nova Comissão de Ética Pública seria estabelecer um clima no qual a conduta ética fosse reconhecida como o padrão. O BID participou desde o princípio, contratando consultores a fim de estudar modelos de outros países, dentre os quais os Estados Unidos e a Austrália, e dando assessoria sobre o uso de pesquisas de opinião para estimular o interesse e apoio da sociedade.
O alvo são as altas autoridades. A Comissão desde o começo concentrou-se nos mais altos escalões da burocracia brasileira, cerca de 700 altos funcionários. Partiu-se da premissa de que seria pouco realista e fadada ao fracasso qualquer tentativa de modificar o comportamento de todos os 500.000 funcionários públicos do país.
Assim que Fernando Henrique aprovou o novo código de ética em agosto de 2000, os seis membros da Comissão (nenhum dos quais recebe salário por isso) começaram a contactar cada uma das 700 autoridades a fim de lhes explicar o código de conduta e os requisitos de adesão voluntária. As autoridades foram informadas que, embora a Comissão não tivesse poderes de implementação, teriam que aderir ao código se quisessem permanecer no governo.
Durante as entrevistas, as autoridades foram solicitadas a apresentar uma descrição detalhada de sua situação financeira. “No começo, foi uma missão extremamente delicada”, lembra Piquet. “As reações foram fortíssimas. Algumas dessas autoridades são pessoas muito ricas e tinham receio de revelar informações, mesmo sob o mais absoluto sigilo.” A princípio, as autoridades também não gostaram de ouvir que seriam obrigadas a abrir mão de determinados tipos de investimentos, principalmente participações especulativas em setores sensíveis afetados por políticas governamentais. Mas as conversas foram ficando mais descontraídas à medida que as autoridades entendiam que a função da Comissão era ajudar a solucionar problemas e não apenas dizer não. Por exemplo, se um alto funcionário já possui investimentos sensíveis a Comissão procura uma saída de forma a que este possa manter seus investimentos sem incorrer em descumprimento do código. A Comissão pode, inclusive, defender o funcionário quando alguém levanta falsas acusações contra ele.
Mesmo a falta de poder de implementação tem suas vantagens. Quando ocorre alguma falta ética, as autoridades da Comissão simplesmente se reúnem com o funcionário em questão e tentam convencê-lo a tomar as devidas medidas corretivas. Em geral, o resultado é uma resolução mais rápida do problema do que o tradicional método de processos administrativos e judiciais que podem se arrastar durante anos a fio.
Eleições e compras. A atual campanha presidencial no Brasil tem sido extremamente útil para o aperfeiçoamento dos padrões de ética. Com base nas regras gerais do código de ética, a Comissão elaborou normas detalhadas para orientar a participação de funcionários públicos no processo eleitoral. Por exemplo, o funcionário público pode se envolver em política partidária, mas não pode utilizar recursos públicos ou comparecer a um evento político sob pretexto de estar em função oficial. Tampouco pode utilizar meios de transporte oficiais para ir a um evento político ou participar de aspectos relativos à coordenação de campanhas, tais como administrar fundos.
A maior preocupação ética no momento diz respeito ao processo de compras do governo. “O governo realiza aquisições gigantescas”, diz Carneiro, “e os problemas éticos podem ter proporções enormes.”
A estratégia da Comissão é identificar “momentos de corrupção potencial” e eliminá-los. Os planos de aquisição, por exemplo, são revistos à medida que avançam e os pagamentos feitos de acordo com sua execução. Sempre que se faz avaliação do progresso, existe um “momento” potencial para corrupção, segundo Piquet. Por isso, a Comissão vem tentando conseguir que haja representantes de vários órgãos distintos, e não de apenas um, nessas avaliações.
Embora os resultados das atividades da Comissão sejam difíceis de quantificar, Piquet afirma que houve transformações tangíveis na disposição demonstrada por funcionários públicos de alto escalão no sentido de enfrentar problemas éticos, além da criação de uma cultural de prevenção que está realmente ajudando a reduzir o nível de corrupção. Entretanto, ele não considera sua missão cumprida. Grande parte to êxito da Comissão deve-se ao forte apoio político recebido do atual governo e muito dependerá do apoio que receba do novo governo após as eleições deste ano.