
Agosto 23, 2021
Em sua viagem de 14 quilômetros até sua fisioterapia, João tem gravadas na sua mente as irregularidades do pavimento e as árvores em seu caminho, que ele reconhece com um abraço para medir a distância que falta para chegar no terminal.
Por causa de sua deficiência visual, ele também sabe quais semáforos faltam sinais sonoros para lhe dizer quando atravessar, ou as paradas de ônibus que passam sem aviso prévio.
Para Junior, a rotina de chegar ao trabalho possui riscos. Em sua cadeira de rodas, ele sabe de todos os trechos sem pavimento, forçando-o a caminhar ao longo da rua ao lado de caminhões.
Os riscos são diferentes para Luciana, uma estudante que chega tarde da universidade: o assédio e a violência de gênero condicionam seus horário, sua forma de vestir e duplica seu tempo de viagem se ela quiser evitar andar por áreas não iluminadas.
Todos eles são usuários da mesma rede de transporte público na cidade de Curitiba, que no passado foi um ícone da mobilidade urbana e da sustentabilidade. Entretanto, o assédio aos usuários, principalmente mulheres, e a falta de acessibilidade afetam os deslocamentos diários de milhares de pessoas em uma cidade onde mais de 300.000 pessoas têm uma deficiência e 61% dos usuários de transporte público são mulheres.
Para aumentar a demanda de passageiros no transporte público, a cidade iniciou um ambicioso programa para melhorar a mobilidade urbana com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). A ênfase deste projeto está na Linha Direta Inter 2, de 38 km de extensão, que liga 28 dos 75 bairros de Curitiba e onde vivem 580.000 habitantes. Como tomar as medidas certas para melhor atender às necessidades dos cidadãos? A resposta foi dada pelas próprias pessoas: especialistas do BID percorreram com os usuários suas viagens diárias, tomando suas experiências e necessidades como insumos essenciais, a fim de traçar juntos o caminho para a inclusão.
TRANSPORTE PÚBLICO VERDADEIRAMENTE INCLUSIVO
"O Banco viu com seus próprios olhos as dificuldades, desafios e barreiras que essas pessoas enfrentam em sua vida diária", diz Lauramaría Pedraza, urbanista da Divisão de Transportes do BID. O processo foi possível através de metodologias inovadoras criadas pela Divisão de Transportes, Divisão de Habitação e Desenvolvimento Urbano, e pela Unidade de Infra-estrutura Social, do BID.
Duas ferramentas foram utilizadas: o Customer Journey Maps - anteriormente aplicado em Bogotá, Santiago do Chile, Medellín e Santo Domingo - e o Gender Sensitive Walkability Index, para gerar três diagnósticos que permitiram delinear o que é necessário para tornar a inclusão uma realidade em Curitiba.
No Customer Journey Maps, a experiência dos usuários em suas viagens é mapeada em doze etapas, identificando meticulosamente as barreiras físicas, operacionais, comunicacionais e atitudinais que enfrentam, e registrando as reações e recomendações que eles mesmos fazem como melhorias.
"Às vezes o elevador de ônibus fica preso, quando tenho que pedir ajuda, e o motorista fica irritado porque leva mais tempo enquanto o problema está sendo resolvido", diz Júnior em uma etapa.
O caso de Júnior foi um dos sete perfis escolhidos para refletir a pluralidade de experiências que a mesma jornada pode representar: o de um homem com uma deficiência física, uma mulher idosa, uma mulher grávida, uma jovem com uma deficiência cognitiva, uma jovem com uma deficiência auditiva e uma mulher que cuida de seu filho. Em cada caso, os usuários foram acompanhados e ouvidos por um grupo de especialistas do Banco e funcionários locais.
"A deficiência não é um limitante, mas as barreiras nos sistemas de transporte e no espaço urbano são. A metodologia serve para entender a viagem a partir da perspectiva do usuário", diz Pedraza.
Além do acesso às pessoas com deficiência, a equipe se concentrou na experiência das mulheres no transporte público. Em uma cidade onde a maioria dos usuários são mulheres e em um contexto de alta incidência de assédio - em 2017, 37,1% das mulheres brasileiras disseram ter sido vítimas de assédio nos últimos 12 meses - esta informação é essencial para melhorar a experiência das usuárias do sexo feminino. Um piloto foi projetado para conhecer mais sobre o nível de satisfação das usuárias do transporte público feminino, acompanhando as mulheres em suas rotas cotidianas para observar as barreiras que elas enfrentam no acesso e uso do transporte público.
"É impressionante como o assédio é normalizado. Uma jovem mulher disse que havia usado o transporte público a vida inteira, mas uma noite, a caminho de casa, um homem a assediou e ela começou a se sentir mais insegura no transporte", diz Amanda Beaujon, consultora de gênero do Setor de Infraestrutura e Energia do BID, que acrescenta que esta migração para outros meios de mobilidade não está disponível para todos. "Isto reforça a desigualdade, porque nem todos podem pagá-lo. Outro usuário nos disse: 'o assédio é algo com que tenho que viver todos os dias e não tenho escolha'".
A segunda metodologia utilizada em Curitiba foi o Gender Sensitive Walkability Index, uma ferramenta quantitativa que avalia a qualidade dos espaços públicos para pedestres e considera a experiência de mulheres e meninas quando andam nas ruas. O índice foi desenvolvido através de questionários aplicados ao longo de quatro rotas diárias e noturnas, por técnicos e técnicos da prefeitura de Curitiba e em parceria com a organização sem fins lucrativos SampaPé. Deste processo surgiu a possibilidade de identificar oportunidades de intervenções para promover uma melhor percepção de segurança por parte dos usuários da linha direta Inter 2.
Estas são mudanças que podem melhorar vidas: o impacto da violência de gênero e insegurança é visto de muitas formas, desde o tempo perdido na escolha de rotas mais longas, mas percebidas como mais seguras, até as oportunidades perdidas. De acordo com um estudo da SampaPé, muitas mulheres que vivem em Curitiba recusaram emprego ou oportunidades de estudo por causa do tempo de transporte ou por não viajarem à noite. Mudar esta realidade através da infraestrutura, incluindo mais opções de rotas, melhor iluminação e maior acesso à informação, traz melhorias para todos os usuários.
"Desde o momento em que se coloca a primeira pedra, se deve pensar nas variáveis de inclusão. Tivemos a oportunidade de trabalhar neste projeto e a enorme oportunidade de incorporar à força estas questões a esta operação", explica Pedraza.
*Com a participação de Amanda Beaujon, Laureen Montes, Juliana de Moraes, Catarina Mastellaro e Pablo Guerrero.
P Saiba mais sobre acessibilidade e inclusão no transporte em Curitiba, acesse
