Após a divulgação de um novo programa para aumentar a segurança de vôo na América Central (leia o comunicado de imprensa ao lado), parece justo perguntar: É perigoso viajar de avião na América Latina?
Claro que a resposta é negativa. Apesar do que muitos passageiros sentem durante a decolagem, todos sabem que as estatísticas do mundo inteiro demonstram que há mais segurança no avião do que em qualquer outro dos principais meios de transporte.
O que geralmente não se sabe é que os desastres de avião, embora raríssimos, são muito mais comuns em certas regiões do mundo do que em outras. E, infelizmente, na América Latina e no Caribe esses acidentes ocorrem com mais freqüência. De acordo com registros da Boeing Co., entre 1988 e 1997 essa região respondeu por 8% das decolagens de aviões no mundo todo - e por 26% do total de acidentes. Já os Estados Unidos e o Canadá, responsáveis por 50% de todas as decolagens, tiveram apenas 18% dos acidentes de avião ocorridos no mesmo período.
A disparidade em termos de segurança é ainda mais impressionante se medida em função do número de óbitos dividido pelo total de milhas percorridas pelos passageiros. Nos países da América Central, por exemplo, esse índice de desastres aéreos é 120 vezes maior do que nos Estados Unidos.
Embora seja difícil determinar a causa de um desastre, os peritos acreditam que esses índices de acidentes desproporcionalmente altos são um indício de deficiências múltiplas em setores como o de manutenção, treinamento e supervisão. Como os desastres de avião costumam ser vistos como fatos isolados, essas deficiências não recebem muita atenção nem dos governos nem da mídia. A verdade, porém, é que apesar da cobertura macabra de acidentes aéreos pela televisão, o volume e a freqüência das viagens aéreas na América Latina não param de crescer.
Os custos da falta de visão. Há boas razões para se fazer algo no sentido de melhorar a segurança do transporte aéreo. Além de prevenir o desperdício de vidas humanas, o estabelecimento de padrões mais elevados de segurança talvez elimine o que na América Latina tem sido o maior obstáculo ao crescimento das companhias de aviação e à expansão do comércio e do turismo que esse crescimento propicia.
Os problemas de segurança constituem um obstáculo ao crescimento, pois tanto o governo como as empresas de transporte aéreo comercial relutam cada vez mais em deixar que suas aeronaves incluam em suas rotas países com índices tão baixos de segurança, como também não demonstram boa vontade em aceitar aviões procedentes desses países. Os Estados Unidos, que de longe representam o destino estrangeiro mais importante para as empresas de aviação da América Latina e do Caribe, começaram a negar permissão para novas linhas regulares procedentes de países que não atendem os critérios de segurança definidos pela Organização Internacional de Aeronáutica Civil (OIAC). Assim, de agosto de 2000 para cá, 12 países da América Latina e do Caribe não receberam permissão para aumentar o número de vôos com destino aos Estados Unidos (ver link à direita). Essas restrições acarretaram vultosos prejuízos para a renda potencial e para a fatia de mercado das empresas aéreas da região, e isso numa época em que o tráfego aéreo entre a América Latina e os Estados Unidos goza de uma expansão nunca vista.
Os antecedentes dessa nova política dos Estados Unidos, cujos efeitos, aliás, se estendem a companhias de aviação de outras regiões, remontam à Convenção Internacional sobre Aeronáutica Civil, realizada em Chicago em 1944. Naquela época, era evidente que, para que as viagens aéreas internacionais continuassem aumentando, as pessoas necessitavam da garantia de que estavam em vigor certas normas de segurança básicas, independentemente do destino. Em vista disso, os delegados dos países participantes da reunião de Chicago concordaram em criar um longo e detalhado conjunto de normas de segurança dentro de seus territórios. Fundaram também a OIAC, incumbindo-a de atualizar os adendos à convenção que definiam critérios de segurança para uma série de fatores, desde a formação de pilotos à iluminação das pistas.
Nos 50 anos seguintes, a Convenção de Chicago logrou um êxito notável. A adoção de padrões universais de segurança foi fundamental para fazer das viagens aéreas a forma de transporte mais segura do mundo. Insuflando ânimo em outros países quanto à segurança, a convenção permitiu a difusão acelerada das viagens aéreas internacionais, que são agora um fator imprescindível para a economia global. Aliás, tamanho foi seu sucesso que poucos se perguntavam em saber se suas diretrizes eram adotadas, e muito menos ainda como era colocada em prática.
Em síntese, a Convenção de Chicago funcionou graças a um código de honra: entendia-se que os países estavam cumprindo sua parte na observância das normas de segurança definidas pela OIAC, mas na verdade ninguém fazia auditorias independentes para verificar se era esse o caso.
Prova positiva. Infelizmente, com a ascensão imprevista do volume e da freqüência do tráfego aéreo internacional a índices antes inimagináveis, o código de honra da OIAC foi aos poucos sendo colocado em xeque. No início da década de 90, a economia global em rápida expansão gerou um aumento vertiginoso no número de aeronaves que, procedentes de países em desenvolvimento, pousavam nos congestionados aeroportos de cidades como Nova York, Londres e Tóquio. Após alguns acidentes com aviões da América Latina em solo americano que receberam farta divulgação, a Administração Federal de Aviação (AFA) dos Estados Unidos começou a manifestar preocupação com o fato de muitos países não estarem observando as normas estabelecidas pela OIAC. Em 1992, o FAA tomou a iniciativa de realizar auditorias nos órgãos oficiais de aeronáutica civil do mundo todo, e divulgou os resultados.
A essa altura, a questão da observância das normas de segurança e das auditorias externas também estava na pauta de discussão dos 183 países membros da OIAC. Embora muitos países, diante do caráter compulsório dessa auditoria, tenham inicialmente resistido, alegando violação da soberania nacional, a preocupação em torno da segurança foi aos poucos se impondo. Em 1996, os membros da OIAC aprovaram o lançamento do Programa de Avaliação do Controle da Segurança, voluntário, destinado a realizar auditorias independentes sobre segurança, concessão de brevês para pilotos e formação técnica de pessoal, operações de vôo e aeronavegabilidade (os anexos da Convenção de Chicago abarcam inúmeros fatores de segurança além destes). Esse programa, como o da AFA, constatou deficiências sérias na capacidade dos países de atender aos padrões mínimos de segurança da OIAC. A insuficiência, ou mesmo inexistência, de legislação reguladora, a falta de peritos em aeronavegação, a ausência de sistemas de concessão de brevês adequados e a insuficiência na preparação técnica da tripulação em geral foram alguns dos problemas que vieram à tona durante as auditorias.
A preocupação diante desses resultados levou os membros da OIAC a aprovar um programa compulsório de auditoria que, a partir de 1999, submetesse cada país a inspeções periódicas. À diferença das anteriores, que eram voluntárias, as auditorias agora são obrigatórias, sendo divulgado um resumo de seus resultados.
O sentido desses avanços é, em suma, que nenhum país tem mais condições de evitar esse escrutínio. Com o aumento da disponibilidade de dados sobre a segurança no transporte aéreo, os países com deficiências terão dificuldade para atrair turistas e investidores nos setores em que o transporte aéreo é crucial. Arcarão igualmente com prêmios de seguro de acidente mais altos. Joan Bauerlein, ex-perita em segurança da AFA que atualmente colabora com o BID e lidera a equipe de projetos do programa financiado pelo Fundo Multilateral de Investimentos (Fumin) na América Central, cita o Nepal como um exemplo das conseqüências drásticas que os acidentes podem acarretar. "Após dois graves acidentes em Katmandu em 1992, o turismo sofreu uma queda de 20%", afirmou ela, "com reflexos na economia, já que este constitui a principal fonte de divisas do país."
As vantagens do esforço de grupo. A boa notícia é que são relativamente baixos os custos que um país tem de enfrentar para elevar os padrões de segurança ao nível exigido pela OIAC. Segundo Joan, em muitos países alguns poucos milhões de dólares — bem administrados — seriam suficientes para aperfeiçoar os necessários sistemas legal, institucional, de formação e de controle da aviação. Aliás, Joan acredita que nesses casos a liderança política é muito mais importante do que o dinheiro. Segundo ela, se os líderes políticos "definirem as metas e prioridades, e mobilizarem o público em apoio a essas mudanças", será muito rápido o aumento da segurança. E cita a Costa Rica e a Colômbia como exemplos de países da região em que um esforço concentrado no plano ministerial permitiu melhoria considerável nos padrões de segurança.
Nesse sentido, o recém-criado programa apoiado pelo Fumin na América Central pode servir de modelo. O programa será executado pela COCESNA, cooperativa regional muito peculiar, que desde 1960 vem realizando serviços de controle do tráfego aéreo e de navegação e comunicação para seus países membros. Juntando recursos e investindo em soluções técnicas que cobrem todo o perímetro de vôo da América Central, e não os países separadamente, os membros da COCESNA conseguiram uma economia substancial. Desde 1990, eles aplicam esse enfoque através da Escola Centro-Americana para Treinamento Aeronáutico, instalação comum em que se reúne pessoal da infra-estrutura aeroportuária de toda a região para cursos de especialização e atualização.
O Fumin agora ossibilitará o acesso da República Dominicana, do Haiti e do Panamá aos recursos da COCESNA. O programa visa igualmente consolidar a COCESNA, ajudar seus membros na coordenação de normas de tráfego aéreo e facilitar a busca de informações sobre segurança, para finalmente habilitar os participantes a satisfazer plenamente às exigências definidas pelos padrões da OIAC.
Bob Booth, consultor em transporte aéreo sediado em Miami e editor do boletim Aviation - Latin American & the Caribbean, afirma que o novo programa ajudará no sentido de que as questões de segurança receberão a merecida prioridade. Acrescenta que "a maioria das autoridades responsáveis pela aeronáutica civil da região está de acordo quanto à existência do problema, e pressiona seus governos para dar a esse problema um tratamento adequado. O BID é a organização mais indicada para cuidar disso, porque, além de sua total independência, não representa quaisquer interesses pessoais. Contribuindo com isenção e objetividade, fará também com que as verbas tenham o destino mais adequado."