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Tchaikovsky no altiplano

Momentos antes de um concerto noturno da Orquestra Sinfônica Nacional da Bolívia em La Paz, em julho último, os cambistas do lado de fora do Teatro Municipal estavam vendendo os ingressos por quatro vezes o seu valor nominal.

Dentro, a sala completamente lotada logo aplaudiria ruidosamente o ritmo da cueca, balada tradicional e dança folclórica dos Andes bolivianos. As três apresentações seguintes do programa – com cantores populares bolivianos e canções tradicionais com arranjos para orquestra feitos por compositores bolivianos – também tiveram casa cheia. Uma gravação comercial do concerto esgotou-se rapidamente.

Este não é o tipo de comportamento que os bolivianos normalmente associam com a única orquestra permanente de seu país. Na maioria dos seus 54 anos de existência, a orquestra vinha a público apenas algumas vezes por ano para executar óperas ou balés condensados para um público leal, mas basicamente de elite. Até recentemente, as apresentações eram realizadas em um pátio elegante com capacidade para apenas 200 pessoas e cuja acústica impedia que se soubesse se o que estava sendo tocado era bom ou ruim. O preço dos bilhetes ficava em torno dos US$10 – uma quantia proibitiva para a maioria dos bolivianos.

Após anos de dificuldades financeiras e artísticas, a orquestra enfrentou mais uma crise no verão de 1997, quando o maestro e diretor artístico se demitiu alguns dias antes de diversas apresentações programadas. David Handel, um maestro americano de 33 anos que dirigira anteriormente a orquestra como convidado e que por acaso se encontrava visitando amigos em La Paz, recebeu um telefonema urgente em que lhe foi perguntado se poderia substituir o demissionário. Aceitou, e os concertos agradaram tanto que em seguida Handel recebeu uma proposta para ocupar o cargo vago.

Era uma escolha difícil. Depois de trabalhar oito anos como maestro convidado com base em Chicago, a carreira de Handel finalmente começava a decolar. Ultimamente, tinha recebido ofertas de outras orquestras latino-americanas e de uma dos Estados Unidos – todas musicalmente superiores à de La Paz. Mas diversos fatores acabaram fazendo com que ele optasse pela Bolívia. Uma delas foi o público, que Handel descreveu como "muito entusiasta e encorajador" em recente entrevista dada em seu apartamento em La Paz. Outro foi o fato de que a orquestra tinha uma tradição de trabalhar com o patrocínio de empresários, embora fosse primariamente financiada pelo governo. Finalmente, Handel divisou numerosas áreas em que achava que poderia introduzir mudanças imediatas – se recebesse carta branca para isso. Tito Hoz de Vila, Ministro da Educação, Cultura e Desportos da Bolívia, responsável pela orquestra, deixou claro que Handel teria o apoio do governo. Em resumo, "achei que era possível construir alguma coisa aqui", explicou Handel.

E começou a construir muito rapidamente. Em sua primeira temporada, a orquestra executou 50 concertos, um número muito superior aos oito do ano anterior. Para atrair um público maior e oferecer melhor acústica, Handel mudou a orquestra do seu pátio para o Teatro Municipal – o local de maior prestígio de La Paz. Para tornar as apresentações acessíveis ao maior número de pessoas possível, introduziu descontos para estudantes e substituiu o preço único de ingresso por preços escalonados, cujo patamar inicial era de menos de um dólar para os estudantes.

Receita dobrada.
A resposta do público foi imediata. Em um ano, a audiência cresceu 500% e a receita com a venda de ingressos dobrou. Cerca de metade do novo público era constituída de pessoas de menos de 40 anos de idade, graças aos concertos e à publicidade dirigidos a estudantes universitários. A cobertura da mídia aumentou dramaticamente quando Handel fez sete excursões nacionais com a orquestra em apenas uma temporada, contra só uma no ano anterior. Além de concertos nas principais cidades, como Sucre, Tarija, Potosí e Oruro, a orquestra se apresentou pela primeira vez em El Alto, imenso subúrbio da classe operária de La Paz, habitado sobretudo pelos indígenas aimará. "Fizemos duas apresentações em El Alto para casas completamente lotadas", relembra Handel. "Foi muito emocionante, porque durante anos a orquestra tinha sido um símbolo de discriminação de classes e nós estávamos dizendo que não era assim que víamos as coisas."

Handel está expandindo agressivamente o repertório da orquestra. Estabeleceu relações formais com diversos compositores bolivianos, tanto para que façam o arranjo de músicas tradicionais que nunca foram adaptadas para orquestra como para apresentar peças inéditas. Está também regendo obras de um repertório clássico padrão que nunca tinhas sido tentado antes pela orquestra. A sua segunda temporada incluiu as estréias bolivianas de obras principais de Tchaikovsky e Shostakovich.

Na parte administrativa, Handel liderou a criação da Fundación Orquestra Sinfónica Nacional, entidade sem fins lucrativos que tem por objetivo promover a orquestra e suplementar os recursos do governo com a ampliação de um programa de patrocínios de empresas e pessoas físicas. Handel declarou que, em seu primeiro ano, a Fundação conseguiu aumentar a receita em cerca de 50%, graças ao trabalho incansável de angariação de fundos por uma junta diretora composta por figuras eminentes do empresariado local e das comunidades artísticas. "Nossa meta principal é gerar os recursos para melhorar a orquestra, aumentar o salário de nossos músicos e contratar mais músicos", afirmou Miguel Navarro, vice-presidente do Banco Bisa da Bolívia, que dirige a comissão de desenvolvimento da Fundação.

Embora as novas receitas tenham permitido dar um bônus de 20% a seus músicos depois da segunda temporada, Handel deseja fazer muito mais que isso. O pagamento dos músicos é ainda tão baixo que os membros da orquestra são obrigados a ter empregos durante o dia e ensaiar à noite. Handel espera aumentar o orçamento da folha de pagamentos para que os músicos possam trabalhar em tempo integral na orquestra. Pretende também contratar mais 20 músicos. "Isso nos tornaria uma orquestra plenamente profissional, capaz de lidar com um repertório mais exigente."

Questão de relevância.
A agenda ambiciosa de Handel em La Paz não brotou do vazio. Como maestro convidado no início da década de 90, ele intencionalmente buscou oportunidades na América Latina, onde acha que existem várias boas orquestras que tendem a ser ignoradas por maestros estrangeiros. Apresentou-se em diversas ocasiões no México, na Guatemala, na Argentina e na Bolívia. Além de aperfeiçoar o seu espanhol, com que teve o primeiro contato no curso secundário, essas experiências aprofundaram seu interesse pelo que ele vê como paralelos culturais entre a América Latina e os Estados Unidos. "São sociedades cujo desenvolvimento social e político foi fortemente determinado pelas populações de imigrantes. A fusão de culturas indígenas e européias – e o desafio de tornar uma orquestra sinfônica relevante em uma sociedade multicultural – é tão evidente em Chicago como em La Paz. O mesmo acontece com as pressões de uma economia de mercado aberto, em que o dinheiro público para as artes é escasso.

"Sou americano da mesma forma que um boliviano é americano", diz Handel, "e acho que está dentro do objetivo de uma carreira de maior alcance contribuir para o desenvolvimento de uma orquestra em um ambiente culturalmente semelhante ao dos Estados Unidos."

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