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A polícia que merecemos

Em 1993, a cidade de Nova Orleans, Louisiana, nos Estados Unidos, se encontrou em uma situação que residentes da Cidade do México, Buenos Aires ou Rio de Janeiro facilmente poderiam compreender.

Há anos os crimes vinham aumentando. A taxa de homicídio era a maior da nação, dando a Nova Orleans a dúbia reputação de "a capital dos assassinatos da América". A má publicidade estava atingindo o turismo e desencorajando investimentos.

Para piorar a situação, a polícia parecia fazer parte do problema. Uma sucessão de escândalos revelou uma profunda corrupção dentro do sistema policial, incluindo ativo envolvimento no tráfico de drogas. Reportagens sobre a brutalidade policial causavam manchetes nacionais e poucos crimes estavam sendo solucionados. O público desconfiava da polícia e duvidava da disposição ou habilidade dos políticos para resolver a situação de alguma maneira. Nova Orleans parecia estar encerrada em um perverso ciclo que muitos observadores consideravam irreversível.

Mas o ciclo foi revertido. A partir de 1994, Nova Orleans embarcou em uma experiência única em reformas que, atualmente, está sendo estudada por políticos e especialistas criminais ao redor do mundo. Entre 1994 e 1999, o número de homicídios diminuiu 64%, assaltos a mão armada decresceram em 49% e o total de assaltos caiu em 60%. As prisões e condenações aumentaram dramaticamente. A corrupção e a brutalidade por parte da polícia praticamente desapareceram. De maneira ainda mais significativa, pesquisas de opinião pública mostram que os residentes da cidade se sentem mais seguros hoje do que em qualquer momento desde 1986 e 48% dos participantes de uma pesquisa pública realizada em 1999 disseram considerar a polícia um dos melhores serviços da cidade.

O que aconteceu? Uma pergunta ainda mais importante: as cidades da América Latina podem utilizar a experiência de Nova Orleans? Graymond Martin acredita que sim. Um veterano de 13 anos do Departamento de Polícia de Nova Orleans que atualmente é advogado e professor adjunto da Universidade de Nova Orleans, Martin participou de um recente grupo de trabalho na sede do BID que traçou paralelos entre as situações de Nova Orleans e Buenos Aires -- outra cidade que está procurando respostas para reduzir a criminalidade e restaurar a confiança pública na polícia. No ano passado, Martin e Ignacio Garibaldi, advogado e cientista político argentino, prepararam um estudo diagnóstico dos desafios para o sistema policial em Buenos Aires como parte de um programa patrocinado pela Organização das Nações Unidas.

Depende de você.
"As cidades têm a polícia que merecem", disse Martin no início de sua apresentação, rejeitando a noção de que os políticos ou a própria polícia são sempre responsáveis pelos problemas com os sistemas policiais. Mas embora Martin acredite que esses dois grupos obviamente fazem parte do problema, ele insiste que a solução "tem que começar pelo público".

Martin disse que os cidadãos devem tomar iniciativas em duas direções. Primeiro, devem forçar seus representantes eleitos a dar prioridade ao cumprimento da lei tornando-o tema central em mais de uma campanha eleitoral. Os políticos preferem não confrontar a polícia, de acordo com Martin, porque eles sabem que tais confrontos sempre carregam um alto preço político. Como resultado, os representantes eleitos precisam ser forçados a reconhecer que o custo político de ignorar problemas com o sistema policial (que pode ser medido pelos níveis mais baixos de apoio) ser superior ao custo de enfrentar estes problemas. "Políticos precisam ver o valor da reforma policial", disse Martin, e este valor deve ser medido em uma "moeda" — tal como votos — que pode ser utilizada.

Como segundo ponto, os cidadãos devem ultrapassar uma postura puramente de reação e crítica. Ao invés de meramente condenar abusos policiais, grupos de cidadãos devem ter a disposição de conhecer pessoalmente os desafios do trabalho de policiamento, trabalhar em conjunto com as organizações policiais para encontrar soluções e apoiar o aumento do gasto público com policiamento.

Em Nova Orleans, os cidadãos tomaram as primeiras medidas em 1993, quando elegeram Marc Morial para a prefeitura após uma campanha na qual ele usou o cumprimento da lei como plataforma central. Mas de acordo com Martin, na época assessor de Morial para as iniciativas sobre criminalidade, o prefeito imediatamente reconheceu que a frustração generalizada dos eleitores sobre a questão da criminalidade não se traduziria necessariamente em uma disposição para aprovar aumento de verbas para o sistema policial. "Os residentes acreditavam que todos os policiais eram ladrões", relembra Martin. "Certamente não iam querer gastar mais dinheiro com eles."

Mas Morial sabia que seria impossível reformar o sistema policial sem aumento do orçamento. Os salários eram tão baixos que muitos policiais estavam complementando seus ganhos com até 40 horas de trabalho para particulares, como seguranças para companhias privadas ou indivíduos. Não havia viaturas suficientes para patrulhar as ruas e as poucas disponíveis estavam caindo aos pedaços. Os uniformes não tinham sido substituídos em trinta anos e os equipamentos, de modo geral, eram inadequados. O treinamento era realizado de forma irregular e o moral dos policiais não poderia ser pior.

Para que o conselho da cidade aprovasse novos gastos nestas áreas, o prefeito necessitava convencer os cidadãos de que ele não estava propondo a continuidade do sistema. Morial iniciou esse trabalho através da criação de um comitê de cidadãos para a escolha de um novo chefe da polícia. Os 26 membros do comitê concordaram em assistir a workshops teóricos e práticos durante seis sábados consecutivos. Ao final, o comitê entrevistou 40 candidatos para a posição e enviou as suas recomendações para Morial, que subseqüentemente selecionou Richard Pennington, um veterano da força policial de Washington D.C. "Isto foi crucial", Martin disse, "porque no processo de entrevista destes candidatos, os membros do comitê se tornaram especialistas em policiamento e utilizaram este conhecimento para convencer os meios de comunicação e outros cidadãos que necessitávamos de recursos para fazer as coisas de maneira diferente."

Tolerância zero.
Uma das primeiras medidas tomadas por Pennington foi declarar o princípio de "tolerância zero" para com a corrupção interna. Com o auxílio de especialistas em corrupção do FBI, funcionários de Pennington iniciaram a investigação sistemática e ações judiciais contra policiais suspeitos de infringir a lei. Dentro de um período de 14 meses, 126 oficiais foram suspensos e 29 despedidos, enquanto outros 21 se demitiram enquanto estavam sendo investigados.

Essa devassa teve um impacto imediato e decisivo sobre a opinião pública. "Tínhamos que convencer o público que estávamos determinados a melhorar a polícia, e não apenas contratar mais policiais", disse Martin. "Quando mostramos tolerância zero contra a corrupção, criamos a confiança que nos permitiu solicitar fundos adicionais."

O governo de Morial também estabeleceu apoio para as reformas através de encontros diretos com empres rios, líderes religiosos e diversos grupos cívicos, nos quais solicitou que estes representantes da comunidade definissem objetivos específicos. "A comunidade empresarial fez uma proposta durante o encontro", relembra Martin. "Disseram que se conseguíssemos reduzir a criminalidade a ponto de voltar a atrair mais clientes e investidores para a cidade, apoiariam um aumento do orçamento para o departamento de polícia." Acordos similares foram fechados com grupos que pediam redução no número de reclamações sobre brutalidade policial.

Ao final do primeiro ano de sua administração, o governo de Morial havia estabelecido um consenso político sem precedentes para uma profunda reforma. "Pudemos chegar perante o conselho municipal da cidade e dizer: ‘Este é o plano da comunidade; eles querem aumentar as receitas para realizar uma mudança final e substancial na força policial'", disse Martin. Esse consenso, fortalecido pelo fato de que os cidadãos estavam envolvidos no sucesso da reforma, permitiu que o governo implementasse uma série de medidas que teriam sido impossíveis de outra maneira.

A cidade impôs um horário de recolher para os adolescentes, estabelecendo que menores de 17 anos não poderiam circular nas ruas após as 20:00 horas nos dias de semana, durante o ano letivo, e 21:00 horas durante o verão (durante o fim de semana, o horário de recolher foi estabelecido para as 23:00 horas). A burocracia policial foi modernizada e descentralizada, visando colocar o maior número possível de policiais em patrulhas a pé nos diferentes bairros (ao invés de concentrá-los em delegacias ou equipes de segurança para a proteção de políticos, como era antes). Criaram-se centros de policiamento comunitário em bairros de baixa renda, onde ocorria o maior número de homicídios, o que levou a uma queda drástica nos índices de homicídios. A cidade também implementou um programa amplo de treinamento para policiais e aumentou o número de investigadores profissionais de homicídios. Foram adotadas novas regras para o recrutamento e a promoção de policiais, com o objetivo de melhorar as qualificações do quadro de pessoal. E foram adquiridos novos uniformes e radiopatrulhas.

A reação do público a essas reformas foi tão positiva que em 1997 o governo de Morial decidiu lançar um pacote de reformas ainda mais ambicioso. Inicialmente, obteve aprovação do conselho municipal para aumentar os salários dos policiais, entre 12% e 62 %, dependendo do escalão. Depois, garantiu os recursos para recrutar e treinar 200 novos policiais. Foi instalado um banco de dados computadorizado para mapear precisamente os locais onde os crimes estavam sendo cometidos. Passou-se a exigir do chefes de distritos policiais a responsabilidade de demonstrar melhorias mensuráveis nas áreas sob sua administração.

Essa combinação de incentivos e pressão para obter resultados produziu um ciclo virtuoso na força policial, de acordo com Martin. Melhores salários, treinamento e equipamentos, combinados com pesquisas de opinião que mostravam um renovado respeito do público para com os policiais, produziu uma força mais motivada e profissional. E a nova ênfase em melhorias mensuráveis assegurou que os policiais se mantivessem focalizados na prestação dos serviços que os cidadãos aguardavam da parte deles.

Este ciclo virtuoso pode ser replicado em Buenos Aires e outras cidades da América Latina? Martin acredita que sim. Ele acha que muitas das pré-condições necessárias para uma profunda mudança se encontram presentes em Buenos Aires — a começar por um eleitorado que estabeleceu o crime como uma questão política central. Agora, a chave está em assegurar que os grupos de cidadãos desempenhem um papel central no planejamento de qualquer programa de reforma. "Se isso for feito, esses grupos se transformarão em investidores no resultado final", disse Martin.

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