Quando o governo da Argentina anunciou seus planos de vender a companhia telefônica nacional a investidores privados no início desta década, Néstor Vásquez, psicólogo portenho de 30 anos de idade, não escondeu sua preocupação.
"Eu queria saber quem garantiria que o período de espera para a aquisição de uma nova linha telefônica seria menor com os novos proprietários", lembra Vásquez. Ele também se perguntava se os proprietários privados teriam autorização para elevar as tarifas de longa distância a seu bel-prazer e, na essência, se o antigo "monopólio público" não acabaria simplesmente substituído por um "monopólio privado".
Essas preocupações são típicas entre os cidadãos que testemunharam a enorme transferência de setores inteiros do domínio público para o privado ocorrida em muitos países latino-americanos e caribenhos. As privatizações podiam afetar os telefones ou serviços como os de eletricidade, gás, transporte, água ou fundos de pensão, mas a questão era fundamentalmente a mesma: quem garantia que os novos proprietários não se aproveitariam dos consumidores?
Esses temores não são inteiramente infundados. Afinal, foi para proteger os consumidores que a maioria dos países nacionalizou os setores em um primeiro momento. O acesso eqüat;itativo aos serviços e a proteção do consumidor foram outrora invocados como justificativa para o controle do Estado sobre quase todos os aspectos da economia latino-americana típica: do preço do pão e do gás à taxa de juros sobre contas de poupança e ao tamanho do cheque do aposentado.
Mas os consumidores não são o único grupo que se pergunta quem defende seus interesses quando os governos passam o controle de um serviço para o setor privado. As próprias companhias privadas, em particular aquelas que assumem o risco financeiro de administrar determinado serviço, têm todo o interesse em saber quem garante que elas poderão tocar o negócio e recuperar o seu investimento sem intervenção excessiva do governo.
NOVAS REGRAS, NOVOS ARBITROS.
As respostas a essas perguntas se tornam cada vez mais claras, tanto para as companhias como para os consumidores latino-americanos, graças à ação dos reguladores independentes. Esses servidores públicos têm a missão crucial de interpretar e fazer cumprir as leis que regem determinadas áreas de atividade nas economias de mercado. Como os árbitros de uma partida de futebol, supõe-se que os reguladores acompanhem a atividade empresarial e garantam que os jogadores obedeçam às regras do jogo. Agindo dessa forma, eles equilibram os interesses freqüat;entemente conflitantes de companhias, consumidores e do próprio governo.
Em economias dominadas pelo Estado, os reguladores independentes tendem a ser raros ou irrelevantes. O Estado estabelece os preços e os padrões de qualidade para os bens e serviços que ele mesmo produz e distribui; a concorrência é pequena e, portanto, é pequena a necessidade de "árbitros". As regras econômicas do jogo são normalmente estabelecidas por funcionários designados pelo governo, e essas regras tendem a mudar com freqüat;ência para se adaptar às necessidades da administração no poder. As decisões básicas em matéria de regulação ocorrem a portas fechadas, sendo relativamente pequena a contribuição que as empresas e os consumidores podem oferecer ao processo.
O legado desse enfoque, em muitos países, tem sido um emaranhado de regras inconsistentes e até mesmo contraditórias, que podem ser interpretadas de maneiras amplamente divergentes. Essa incerteza no campo da regulação tem tido um efeito devastador sobre o investimento de longo prazo do setor privado, porque as companhias sabem que mudanças repentinas nas regras ao longo do percurso podem arruinar anos de esforço e cuidadosa preparação. "Quando os preços e as taxas dos serviços públicos são estabelecidos pelo Estado, é praticamente impossível atrair o investimento privado", diz Claude Besse, superintendente geral do Sistema Geral para a Regulação Setorial da Bolívia. "Acreditamos que um dos fatores fundamentais para o sucesso da Bolívia em atrair investimentos de capital nos últimos anos foi a criação de uma estrutura reguladora clara, precisa e consistente, que não é suscetível de intromissões políticas."
Claudia Piras, economista do BID que estuda a regulação na região, concorda com essa declaração. "Uma regulação digna de crédito é condição fundamental para as companhias que estão pensando em investir em setores que exigem grandes 'custos irrecuperáveis' iniciais, cujo retorno só aparecerá ao longo de muitos anos", diz ela. "Essas companhias precisam da garantia de que os governos não renegociarão arbitrariamente contratos nem decretarão cortes nas tarifas após a realização dos investimentos."
ACALMANDO OS INVESTIDORES.
Para ganhar credibilidade junto às companhias e atrair investidores, os governos da região têm simplificado e modernizado a legislação e as regulações que afetam setores específicos de empresas e serviços. Na medida em que colocam no pregão as empresas públicas, os países em sua maioria criam também novas entidades reguladoras, atribuindo-lhes uma autoridade sem precedentes para regular o setor após a sua privatização. Assim, antes de colocar em leilão o seu sistema de eletricidade, a Bolívia estabeleceu o quadro legal e regulador em que se daria a concorrência e nomeou um "regulador setorial" independente para supervisar e fazer cumprir as normas.
Conquanto as empresas de utilidade pública privatizadas estejam entre os alvos mais visíveis da fiscalização autônoma, os reguladores também ocupam o centro das atenções em inúmeras outras áreas em que os governos latino-americanos estão transferindo o controle para companhias privadas. Na esperança de prevenir as falências bancárias e crises financeiras que afligiram a região no passado, muitos governos latino-americanos estão fortalecendo os órgãos reguladores dos setores bancário, acionário e securitário. Esses reguladores, muitas vezes conhecidos como supervisores, fazem cumprir as leis elaboradas para impedir desde empréstimos feitos pelos bancos por motivos políticos até o uso fraudulento do dinheiro dos investidores por corretores de bolsas de valores (ver "Direitos do acionista" no número de dezembro de O BID). Os países que privatizaram total ou parcialmente seus sistemas previdenciários também criaram agências reguladoras para, entre outras coisas, garantir que os gerentes de fundos privados não assumam riscos inadequados com o dinheiro capitalizado para o pagamento de futuras aposentadorias.
Em alguns países, até mesmo a proteção ambiental foi fortalecida graças a reguladores independentes. No Chile, por exemplo, as companhias devem apresentar estudos sobre o impacto ambiental dos projetos propostos de construção à Comissão Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), que tem autoridade para rejeitar os estudos e planos que considere insatisfatórios. Nos últimos dois anos, pareceres desfavoráveis da CONAMA sustaram temporariamente diversos projetos industriais importantes, o que prova que as leis ambientais não podem ser fraudadas -- nem mesmo pelas mais poderosas companhias do país.
E COMO FICAM OS CONSUMIDORES?
Mas os reguladores que melhor ilustram a nova importância da supervisão independente na América Latina são os que fiscalizam a própria concorrência. Se bem que as legislações em toda a região há muito incluam disposições destinadas a estimular a livre concorrência e impedir monopólios, essas normas tinham pouco peso em economias dominadas pelo Estado. Hoje, a "política da concorrência" tornou-se subitamente um tema quente.
Considere-se o exemplo dos produtores de farinha de trigo no Peru. Como o preço da farinha era tradicionalmente estabelecido pelo governo, poucas pessoas tinham conhecimento de que os moinhos na verdade competiam entre si. Mas em 1996, em seguida a uma alta repentina no preço do pão, funcionários do órgão regulador da concorrência no Peru -- oIndecopi -- foram colocados sob suspeita. As investigações revelaram que dez diferentes moinhos de trigo tinham entrado em conluio para elevar o preço da farinha -- o que era proibido pela legislação peruana sobre concorrência. As companhias foram multadas -- pela primeira vez na história peruana -- e os consumidores peruanos tiveram garantido o seu direito de escolher entre produtos de panificação com uma variedade maior de preços.
Na prática, a função de mediador entre as empresas e os consumidores torna o regulador objeto de controvérsia. A decisão de permitir um pequeno aumento nas tarifas telefônicas, por exemplo, normalmente será criticada pelas companhias de telecomunicações como insuficiente para garantir os lucros e a expansão. Mas é quase certo que também os grupos de consumidores denunciarão a mesma decisão como um assalto ao bolso da classe trabalhadora. Até mesmo o governo pode protestar contra a decisão -- sobretudo quando o aumento da tarifa ocorre em meses críticos de eleição.
No entanto, é precisamente a natureza contenciosa da regulação independente que faz dela um mecanismo necessário nas sociedades democráticas. No ciclo de queixas, investigações, pareceres, apelações e protestos públicos que acompanham decisões importantes em matéria de regulação, os grupos de interesse são forçados a discutir abertamente as virtudes da sua posição -- e defendê-las contra os argumentos que as refutam. "Esse processo é muito mais transparente do que no passado", declara William Savedoff, economista do BID que está estudando a regulação dos serviços de água na região. "Antes, ninguém sabia exatamente quem era responsável pelos serviços de água ou gás ou como os preços eram fixados. Com isso, ninguém se sentia responsável e os grupos de interesse mais poderosos podiam manipular as decisões em seu benefício."
Já um processo regulador eficaz expõe as pretensões de cada protagonista na decisão -- quer se trate de companhias, consumidores ou governo --, o que torna muito mais difícil a um grupo impor sua vontade sobre os demais. Por isso, os reguladores efetivos podem ter que percorrer um longo caminho para que os mercados livres operem de forma eqüat;itativa e não beneficiem desproporcionalmente as empresas e as elites abastadas. Esse é um ponto crucial nas sociedades que ainda estão se ajustando à concorrência e em que os benefícios sociais das políticas de privatização não aparecem de imediato.
De acordo com Beatriz Boza, advogada que preside o Indecopi do Peru, "a eficácia da atividade de regulação dá aos cidadãos confiança na economia de mercado, porque eles podem ver que, quando os consumidores são trapaceados, temos poder para impor sanções que, em última instância, lhes trazem mais opções e melhores preços do que tinham no passado".