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O monstro por dentro

Será a corrupção o maior problema da América Latina?

Talvez não. Mas, segundo um dos mais respeitados líderes religiosos da região, a corrupção é o maior obstáculo ao desenvolvimento regional e a principal fonte de suas desigualdades sociais arraigadas.

Falando a dirigentes do BID na sede do Banco em Washington, D.C. em fevereiro último, o Cardeal hondurenho Oscar Andrés Rodríguez Maradiaga descreveu a corrupção como um "grande flagelo" que corrói as bases das sociedades latino-americanas.

"A corrupção é um câncer disseminado pelo mundo inteiro", disse Rodríguez, "mas em particular em nosso continente, a ponto de haver uma cultura de corrupção. O abuso do poder público, uso de dinheiro para fins políticos, omissão, presentes ilegais, suborno, sonegação fiscal, fraude – isso é o nosso pão de cada dia."

Rodríguez é conhecido por sua luta pelos pobres e a liderança inabalável nas áreas de justiça social e ética. Seria certamente previsível ouvir um prelado atacar os evidentes males da corrupção. Mas na palestra recente Rodríguez foi muito além de vagas lamentações e expressões de indignação tão comuns das páginas editoriais de todos os jornais da região. Em vez disso, o cardeal deu exemplos específicos de áreas nas quais há corrupção, fez uma análise das mazelas institucionais que a estimulam e sugeriu reformas para erradicá-la.

Rodríguez começou elogiando os esforços do BID no combate à corrupção mediante programas de reforma das instituições públicas em setores como o judiciário, compras governamentais, alfândega e gestão financeira. A corrupção é uma preocupação justa dos organismos multilaterais de desenvolvimento, argumentou, porque muitas vezes prejudica a eficácia dos projetos que financiam. "Temos programas de desenvolvimento onde talvez 20% do dinheiro vão realmente para o desenvolvimento, enquanto o restante se perde na burocracia, no clientelismo, na troca de favores", disse Rodríguez.

O negócio da política. Rodríguez pintou um quadro sombrio sobre como a corrupção infiltrou instituições vitais na promoção do desenvolvimento e preservação da democracia–começando com a política eleitoral.

A corrupção política, segundo Rodríguez, está na raiz da crise institucional da América Latina. A política tornou-se "uma indústria que enriquece um reduzido grupo às custas do resto da população", afirmou. "Os políticos não representam o povo", acrescentou. "Representam grupos de interesse, certos setores de determinado partido e, às vezes, nem mesmo o partido como um todo". As pessoas estão tão desiludidas com o comportamento das autoridades eleitas que se abstêm de votar, disse Rodríguez, contribuindo assim para a ausência de controle da sociedade sobre o governo.

Rodríguez ressalta que os sistemas eleitorais muitas vezes perpetuam esses problemas ao reduzirem a responsabilidade devida pelos políticos a seus eleitores. "Em vários países, os políticos não são eleitos pelo voto distrital, como deveriam", disse Rodríguez. Esses políticos "compram" sua inclusão na chapa de um partido e o público é obrigado a votar em toda a chapa em vez de escolher os candidatos individualmente. Nesse tipo de esquema, as autoridades eleitas têm mais incentivos para defender os interesses partido do que o dos eleitores, segundo Rodríguez.

Citou também a imunidade a processos judiciais – privilégio concedido a parlamentares a fim de preservá-los de ataques de cunho político na justiça – como outra ameaça contra a responsabilização. A imunidade parlamentar foi distorcida, tornando-se um "manto de impunidade", diz Rodríguez, e muitos candidatos buscam se eleger especificamente porque assim conseguem escapar da justiça por alguns anos.

Por tudo isso, Rodríguez acha que a sociedade civil e a comunidade doadora internacional têm atacar o difícil tema da reforma do sistema eleitoral. "Precisamos participar do mundo da política, que simplesmente está fazendo o que bem entende", continua. "O diálogo entre o mundo da ética e o da economia avançou bastante… mas houve pouquíssimo progresso no diálogo entre ética e política."

A trlha do dinheiro. Rodríguez vê outra fonte de corrupção no sigilo que muitas vezes cerca a gestão das finanças públicas pelo governo. Em tom jocoso, disse que a votação pelos congressos para aprovação dos orçamentos federais em geral é marcada para a madrugada, "para que os legisladores estejam bem sonolentos" e não consigam discutir com seriedade as prioridades dos gastos públicos. Citou como exemplo uma ex-ministra da Fazenda hondurenha que sugeriu abertamente que o texto completo do projeto orçamentário federal fosse publicado antes da votação do legislativo, para que o público tivesse oportunidade de examiná-lo. "Ninguém lhe deu atenção", lamenta Rodríguez.

Enquanto os cidadãos ignorarem como é gasto o dinheiro que pagam de impostos, autoridades inescrupulosas e empreiteiros privados contratados pelo governo sempre encontrarão meios para o desperdício, a fraude e o abuso, segundo Rodríguez. Por outro lado, "quando a sociedade civil conhecer o orçamento, quando souber para onde vão os recursos de cada rubrica e quando conseguir controlar como são gastos esses recursos, então estaremos entrando em uma fase de maior desenvolvimento sustentável", diz.

A sociedade não conseguirá ser bem informada sobre os gastos do governo sem a ajuda da mídia, porém, e Rodríguez frisou que freqüentemente os próprios jornalistas são corruptos. "No meu país e em outros, desenvolvemos uma cultura na qual a mídia e repórteres podem ser comprados", disse. Alguns jornalistas oferecem-se para fazer uma cobertura tendenciosa em troca de dinheiro, segundo Rodríguez, e muitas empresas e organizações possuem verbas "publicitárias" usadas especificamente para pagar por uma cobertura favorável na mídia. "Seria bom se essas verbas ‘publicitárias’ fossem examinadas pelo público, porque assim muitas coisas viriam à tona", Rodríguez acrescentou.

Um novo tipo de funcionalismo público.Rodríguez acha que qualquer esforço para acabar com a corrupção exigirá também profundas reformas do funcionalismo público. Contou a história de um ex-diretor da receita federal em Honduras que foi abordado por um candidato a cargo público que lhe disse que queria chefiar um posto aduaneiro — qualquer um servia. "Ele queria com isso enriquecer fraudando o Estado", disse Rodríguez. "Chegamos a esse extremo, à aberração de achar que os honestos são burros: como ter um cargo no governo e não aproveitar para enriquecer?"

A prática de se apropriar do dinheiro público é especialmente freqüente na área de contratações e compras governamentais, segundo Rodríguez. Teoricamente, tais abusos deviam ser coibidos pelos órgãos de fiscalização e controle do governo, mas muitas vezes essas mesmas entidades "acobertam as irregularidades em lugar de evitá-las", diz ele.

Rodríguez diz que é imperativo fortalecer as entidades públicas de fiscalização e controle e elogiou as iniciativas do BID nesse sentido. Postulou ainda a necessidade de medidas para aumentar as exigências profissionais e éticas para o funcionalismo e fortalecer sua estabilidade quando da mudança de governos. "Não podemos trocar todos os quadros públicos sempre que outro governo assume o poder", disse. "A experiência, honestidade e capacidade não podem ser sacrificadas em prol da bandeira de um partido". Continuidade e autonomia política são particularmente importantes no judiciário, acrescentou Rodríguez, porque muitos juízes latino-americanos são nomeados com base em "interesses políticos" segundo as conveniências do partido que está no poder.

O setor privado também precisa de maior fiscalização financeira, segundo Rodríguez. "A corrupção não é problema unicamente do setor público", adverte, "principalmente quando assistimos a práticas monopolistas por parte de empresas privadas, concentração de poder econômico e desrespeito aos direitos de acionistas minoritários."

Guerra desigual mas necessária. Rodríguez tem uma preocupação mais que intelectual com a questão da corrupção. Como presidente de Honduras Transparente, entidade não-governamental criada em 1997, tem liderado a luta contra a corrupção em seu próprio país. O grupo promove a conscientização pública sobre os custos da corrupção e o êxito obtido por outros países em seu combate. "Enfrentamos uma série de dificuldades", diz Rodríguez. "A guerra às vezes é bastante desigual."

Apesar de tudo, Rodríguez continua otimista a respeito das perspectivas de mudança da cultura da corrupção. "O bem é maior que o mal e a verdade pode mais que a mentira", disse. Promovendo uma luta unida contra a corrupção em todos os setores da sociedade, Rodríguez acredita que será possível "formar pessoas com integridade, para termos sociedades íntegras nas quais todos possamos trabalhar em prol do desenvolvimento humano."

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