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O fim da pobreza hereditária

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No início de julho de 2009, um grupo de funcionários do governo da Índia chegou à sede do Banco Interamericano de Desenvolvimento em Washington DC para um encontro com o vice-presidente de Setores e Conhecimento do BID, o mexicano Santiago Levy.

Os visitantes queriam consultá-lo sobre um tipo de programa social em que Levy é especialista e em que o BID investiu cerca de US$ 8 bilhões nos últimos dez anos: os programas de transferência condicionada de renda.

Poucos dias antes, durante sua primeira visita oficial ao Brasil, a presidente das Filipinas, Gloria Macapagal Arroyo, havia elogiado o programa brasileiro de transferência condicionada de renda, que atende quase 12 milhões de famílias e é o maior de seu tipo no mundo. A chefe de Estado havia anunciado sua intenção de criar nas Filipinas um programa similar ao brasileiro.

Os primeiros programas de transferência condicionada de renda do mundo nasceram no México e no Brasil em 1997. Doze anos depois, são um produto latino-americano de exportação.

Uma ideia latino-americana. Também conhecidos como PTCR, os programas de transferência condicionada de renda subsidiam diretamente famílias pobres, transferindo-lhes mensalmente uma pequena soma de dinheiro com a condição de que se cumpram algumas metas de saúde e educação, como levar os filhos ao posto de saúde e enviá-los à escola.

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Indicadores de nutrição, saúde e educação melhoram com os PTCR.

O programa mexicano, inicialmente chamado Progresa e hoje Oportunidades, apresentou resultados tão bons e com tanta rapidez que logo muitos quiseram imitá-lo. E os organismos de financiamento multilateral, como o BID, interessaram-se em financiar sua replicação.

Hoje, a maioria dos países da América Latina tem programas de transferência condicionada de renda (ver quadro) e o modelo foi exportado para países e sociedades tão heterogêneos como Indonésia,  Moçambique, Paquistão, Bangladesh, Malawi, Argélia e Palestina, entre outros. Até a cidade de Nova York tem seu programa de transferência condicionada de renda, o Opportunity NYC, que foi lançado em 2007 seguindo o modelo mexicano.

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As notícias sobre os PTCR foram tão positivas que alguns tendem a minimizar suas dificuldades: a identificação da população beneficiária, o foco de cada programa, a estratégia de saída para que os programas não se convertam em um custo permanente, a quantia ideal de dinheiro para não criar incentivos perversos. “Eles nasceram como programas eminentemente rurais e é complicado expandi-los para áreas urbanas”, acrescenta a especialista em programas sociais do BID, Amanda Glassman. “E também não está claro o papel que eles devem desempenhar em períodos de recessão”.

“Os PTCR não resolvem o problema da qualidade da educação nem melhoram a oferta de serviços de saúde”, observa seu colega Hugo Florez, especialista em serviços sociais do BID. “É preciso ter claro o seu objetivo, que é interromper a transmissão inter-geracional da pobreza”.

Ambos falam com a experiência das lições aprendidas, mas sem perder o entusiasmo. O BID interessou-se pelas experiências mexicana e brasileira desde o início. Ao verem os resultados da primeira avaliação de impacto do programa do México, em 1999, os especialistas do Banco souberam que estavam diante de uma ferramenta que poderia ajudar a reduzir a pobreza em quase todos os países da região.

Por isso, quando o Banco concretizou seus primeiros financiamentos para programas de transferência condicionada de renda em 2001, decidiu fazê-lo em grande escala: investiu US$ 500 milhões na consolidação do programa do Brasil e, logo em seguida, anunciou para o México o maior empréstimo de sua história: US$ 1 bilhão para a ampliação do programa mexicano.

Paralelamente, o Banco ajudava a lançar programas similares em Honduras, Nicarágua e Colômbia e, nos anos seguintes, dava apoio a iniciativas do mesmo tipo em outros países da região.

E continua a fazê-lo até hoje. No final de junho de 2009, aprovou um empréstimo de US$ 850 milhões para a Argentina, destinado a coordenar os programas de transferência condicionada desse país. Um mês antes, em maio, o BID aprovou US$ 600 milhões em financiamentos para fortalecer o programa mexicano.

Em dez anos, o Banco ofereceu mais de U$ 8 bilhões a esses programas na região.

“Mas a inovação foi dos países”, diz Glassman. “Nós aderimos em seguida e, depois, as outras multilaterais”.

 

Um modelo a ser montado. A delegação indiana que visitou o vice-presidente Levy em julho de 2009 não teria interlocutor melhor para conversar sobre o programa mexicano de transferência condicionada de renda: foi o próprio Levy que o idealizou.

A crise financeira mexicana de 1995, detonada por uma desvalorização do peso e conhecida como “tequilaço”, produziu um enorme desemprego no país, acentuando o problema da pobreza extrema. Levy era então subsecretario da Secretaria da Fazenda e o presidente Ernesto Zedillo encarregou-o de projetar um programa para enfrentar a situação.

O projeto de Levy tinha duas coisas que nunca se havia tentado antes: dar dinheiro para as famílias pobres em vez de comida e condicionar a transferência de dinheiro ao cumprimento de metas específicas e fáceis de medir em saúde e educaçã que as mulheres grávidas, as mães lactantes e os bebês fossem regularmente aos centros de saúde, que os filhos estivessem com as vacinas em dia e que as crianças em idade escolar frequentassem efetivamente a escola.

Quando o plano de Levy se converteu em programa piloto em 1997, trazia ainda uma terceira inovaçã um estudo de avaliação de impacto para medir sua efetividade. Os resultados desse estudo, publicados em 1999, despertaram o interesse dos formuladores de políticas sociais latino-americanos e das fontes de financiamento multilateral.

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O BID ajudou o Brasil a consolidar o programa Bolsa Família.

“Nós entramos depois de ver essa avaliação”, diz Glassman. O BID tomou a decisão estratégica de apoiar o programa mexicano e também uma iniciativa semelhante que surgia no Brasil com a fusão de vários subsídios para os pobres em um programa único de transferência condicionada de renda que se chamaria Bolsa Família.

Os resultados da avaliação de impacto do Progresa-Oportunidades foram fundamentais também para a continuidade e ampliação do programa durante o governo de Vicente Fox. Hoje, o programa atende 5 milhões de famílias – uma em cada quatro residências mexicanas– e tem um orçamento de quase US$ 4 bilhões anuais.

“O caso mostrou que um programa de combate à pobreza extrema pode passar de um governo a outro, e inclusive crescer, se for baseado em avaliações sistemáticas das evidências empíricas e em uma operação transparente e apartidária”, diz Santiago Levy em seu livro sobre o tema,Sin herencia de pobreza – El programa Progresa-Oportunidades de México.

Hoje, acrescenta o economista, graças ao Progresa-Oportunidades, o governo mexicano pode realizar transferências de renda diretas a quase toda a população em condição de pobreza extrema.

 

O impacto da avaliação. O Oportunidades é um dos programas sociais mais estudados e avaliados do mundo “e é o que tem os resultados mais contundentes”, diz Ferdinando Regalía, especialista em programas sociais do BID, que liderou os programas de TCR em Honduras e Nicarágua e hoje trabalha em estreita colaboração com Santiago Levy na vice-presidência de Setores e Conhecimento do Banco. Essas análises ajudaram a aperfeiçoar o programa e permitiram aumentar seu orçamento, além de facilitar sua replicação em outros países e servir de modelo para a incorporação de avaliações de impacto em outros programas sociais.

O sucesso dos PTCR em geral explica-se em parte pela quantidade de avaliações de impacto que foram feitas desde a primeira experiência com o Progresa. Os resultados foram medidos de várias maneiras, por várias entidades independentes, com resultados muito similares.

E os estudos foram feitos desde o início. As pesquisadoras do Banco Mundial, Laura B. Rawlings e Gloria M. Rubio, publicaram em agosto de 2003 sua análise do impacto dos programas de TCR no México, Brasil, Honduras, Jamaica e Nicarágua, concluindo que eles são “um meio eficaz para promover o acúmulo de capital humano entre as famílias pobres” e que apresentam “claras evidências de sucesso como aumento das taxas de matrículas escolares, melhora da atenção à saúde preventiva e elevação do consumo familiar”.

Os dois lados da moeda. Os PTCR ajudam inclusive a evitar a corrupção que costuma afetar os programas sociais. A transferência em dinheiro não passa por intermediários ou grandes centrais de compra que poderiam negociar preços e volumes em troca de uma comissão, como acontece quando se distribuem alimentos. Os beneficiários são os melhores controladores da chegada do dinheiro ao seu destino.

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Os resultados da avaliação de impacto mostram uma melhora no uso de serviços de saúde preventiva.

Porém, até os programas mais bem desenhados chocam-se com a baixa qualidade dos serviços de saúde e educação. Os PTCR podem atacar bem o problema da pobreza pelo lado da demanda, mas não fazem nada no lado da oferta, insiste Florez, do BID. Alguns países ainda têm diversas iniciativas sociais sem articulação adequada, o que aumenta os custos de administração e limita o impacto positivo do gasto público.

A atual crise financeira global exige uma expansão dos programas de TCR. No entanto, não está claro o papel que corresponde aos programas de TCR em situações de recessão, segundo Glassman. Alguns analistas temem que a pressão pela expansão desses programas relaxe os mecanismos de identificação dos beneficiários, cuja objetividade e transparência são fundamentais tanto para o funcionamento correto como para a credibilidade dos programas. “No fim da crise, os PTCR podem vir a ter como beneficiárias famílias de pobreza transitória e não estrutural, que requerem intervenções sociais diferenciadas”, diz Mario Sánchez, especialista em desenvolvimento social do BID.

Outro risco é que os PTCR acabem confundindo-se com programas de emergência, que, por definição, devem ser transitórios: nascem com as crises e devem terminar com elas.

“É preciso saber com clareza qual é o objetivo de um programa social antes de pensar que a solução é a transferência condicionada de renda”, ressalta Florez. “Se o objetivo do programa é interromper o ciclo de transmissão inter-geracional da pobreza, então faz sentido um PTCR, mas, para que esse setor seja bem articulado, é preciso não misturá-lo com outros setores, porque isso gera conflito”.

O próprio sucesso dos programas de TCR pode converter-se em debilidade. Como tiveram bons resultados, os governos estão recorrendo a eles como se fossem varinhas mágicas, argumenta Florez, “mas não criemos um polvo que depois não possa mais ser administrado”.

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