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Mau negócio

Filas mais curtas e serviço melhor e mais rápido foi a promessa feita aos clientes do serviço nacional de arrecadação de impostos de um grande país da América Latina quando uma empresa multinacional de informática ganhou o contrato para automatizar as operações do órgão.

A oferta vencedora incluía um subcontrato de US$30 milhões para "serviços de desenho de software"que seriam realizados por uma empresa local. Mas essa empresa local só existia no papel. Na verdade, os US$30 milhões estavam a caminho de contas bancárias no exterior, mantidas por funcionários graduados do serviço fiscal, executivos de empresas de informática locais e outros indivíduos que ajudaram a fechar o negócio.Quando a fraude foi descoberta, já era tarde demais para recuperar a maior parte do dinheiro.

Os US$30 milhões pertenceram antes aos cidadãos do país. Foram pagos em forma de impostos por pessoas que esperavam que o dinheiro fosse gasto de modo judicioso em serviços públicos extremamente necessários. Mas a suposição de que os governos procuram conseguir o melhor negócio possível quando despendem dinheiro público é freqüentemente incorreta nos países da América Latina e do Caribe hoje em dia. A fraude hipotética descrita brevemente acima, com base em diversos contratos reais que chegaram às manchetes nos últimos anos, é tristemente familiar para os povos da região. Os totais podem nem sempre ser tão altos. Mas, quando governos ou instituições públicas adquirem bens ou serviços, parece que ineficiência, fraude e abuso são a norma, não a exceção.

Até há alguns anos, problemas com aquisições governamentais não ocupavam lugar de destaque na agenda pública. Foi sempre difícil detectar esses abusos e avaliar o custo para o contribuinte. O volume das transações, a papelada envolvida, os diversos níveis de burocracia que se sobrepõem — tudo isso desencoraja o controle e a fiscalização rigorosos. Além disso, em países em que mais de 80% do orçamento público se destinam ao pagamento de salários, pensões e benefícios da previdência social, a preocupação com como serão gastos os outros 20% pode parecer despropositada. Nos piores casos, isso levou à aceitação fatalística de que as aquisições públicas são um dos pré-requisitos do poder político, um assunto interno que cada governo que assume o poder pode tratar como achar mais conveniente.

Nos últimos anos, porém, a indiferença foi pouco a pouco substituída pela indignação. Talvez devido à maior abertura proporcionada pelo amadurecimento das democracias, essa questão antes negligenciada está sendo discutida em praça pública. "Nunca houve um momento como este no mundo, com tanta escrutínio de funcionários do setor público e da vida pública em geral", diz Jorge Claro de la Maza, ex-gerente, recém-aposentado, do Escritório de Política e Coordenação de Aquisições do BID. "O serviço público costumava ser fechado e de baixa qualidade. Agora as pessoas estão exigindo que ele seja transparente e de alta qualidade. O público em geral está assumindo o papel de cão de guarda das questões de interesse público."
 
O resultado desse novo escrutínio é uma sucessão aparentemente infindável de escândalos. O administrador de um hospital público que é pego pagando três vezes mais o preço de varejo por fraldas descartáveis compradas de um fornecedor que, fica-se sabendo, é membro de sua família.Um legislador que é apanhado fechando contratos lucrativos de "assessoria" com pessoas que nunca aparecem para trabalhar. Uma nova estrada pavimentada que acaba custando à prefeitura 150% mais do que o preço original estimado e que depois de dois anos está cheia de buracos devido a construção precária. Os exemplos são inúmeros e nenhum país está isento.

A indignação pública é alimentada por uma consciência muito maior dos custos reais do problema. Números do BID indicam que os governos latino-americanos e caribenhos normalmente gastam entre 10% e 15% de seu PNB com bens e serviços, num total regional de cerca de US$250 bilhões ao ano. "Se a ineficiência do Estado — e só a ineficiência, não a fraude — está forçando os governos a pagar um excesso de 15% a 20%, a região poderia estar economizando algo entre US$40 bilhões e US$50 bilhões ao ano ao fazer as coisas corretamente", diz Claro. Outra forma de examinar a magnitude dos recursos desperdiçados é considerar que a maioria dos países poderia dobrar seus gastos com saúde e educação se pudesse recuperar os 15%-20% do orçamento público perdidos com aquisições desregradas.

Mas os benefícios financeiros não são os únicos a ser colhidos com o fim da fraude e da ineficiência nas compras públicas. Ao contrário dos esforços tradicionais para reduzir as despesas do governo — como corte de salários de funcionários públicos —, a poupança derivada da reforma do sistema público de aquisições normalmente não tem um custo social ou político alto. Ao contrário, um governo que consegue mostrar que economizou o dinheiro do contribuinte ao adquirir bens e serviços de alta qualidade ao menor preço possível provavelmente se sairá bem nas próximas eleições.

Ineficiente de propósito?
Quando se levam em conta as recompensas políticas e econômicas da limpeza nas aquisições públicas, por que se fez tão pouco progresso? Parte da resposta é que o status quo pode ser atraente para empresas e indivíduos que estão se beneficiando dos negócios com governos dentro do sistema atual. "Não sei se por desígnio ou por omissão", diz Claro. "Mas a verdade é que é um processo lucrativo para muita gente."

A forma varia consideravelmente entre os países da região. Mas, segundo Claro e outros observadores, os sistemas de aquisições públicas na América Latina e no Caribe apresentam certos problemas recorrentes. Um deles é a qualidade das leis que governam as aquisições públicas. Em muitos casos a legislação é antiquada e não responde mais às práticas e conceitos dos negócios modernos. Muitos países, por exemplo, não permitem que as ofertas seladas sejam enviadas por correio expresso porque as leis dizem que elas têm que ser entregues pessoalmente. As leis de aquisições também tendem a ser excessivamente específicas e complexas. "Recentemente estive num país em que cada aquisição requer 17 despachos oficiais diferentes", conta Claro.

Ironicamente, muitos países com as leis mais complexas não deram o passo seguinte que é publicar os regulamentos que explicam exatamente como a lei será aplicada. De fato, muitos não têm nem mesmo uma entidade reguladora encarregada das compras públicas. "Quando visito os países dou-me conta de que não tenho interlocutor", diz Claro. "Não há ninguém com a responsabilidade geral de formular políticas de aquisição, interpretar a legislação, propor novas regras ou coordenar as informações sobre as compras do governo como um todo." Os funcionários encarregados de aquisições, com poucas exceções, não têm treinamento especializado e não gozam de prestígio profissional.

O resultado em muitos países é o pior de dois mundos. Leis excessivamente específicas geram exigências arcanas, montanhas de papel e obstáculos burocráticos. Por outro lado, a ausência de regulamentos claros, de uma autoridade reguladora central e de funcionários especializados encoraja práticas inconsistentes e arbitrárias entre as diferentes entidades governamentais. Para obter resultados nesse tipo de ambiente, "é preciso ‘molhar a mão' de algumas pessoas", diz Claro. Subornos, comissões, contratos fantasmas e outras manobras tornam-se parte necessária dos negócios com os governos.

Mas, acima de tudo, o que falta é informação. Em muitos países é quase impossível ter uma idéia geral de quais os bens e serviços que estão sendo comprados, a que preço, por quais órgãos do governo e de quais fornecedores e empreiteiros. As auditorias externas, quando são feitas, o são depois do fato e geralmente como resultado de protesto público contra um abuso especialmente gritante.

De fato, Claro acredita que auditorias mais rígidas e controles posteriores, embora importantes, não resolverão a crise das aquisições. Embora pareça óbvio, ele acha que a única solução é aumentar o perfil político, a autoridade e a capacidade técnica dos encarregados do processo de aquisições.

A experiência de uma cidade.
Isso não é tão difícil quanto parece. Senão vejamos o caso da Cidade de Buenos Aires, gigante urbano com um orçamento público de mais de US$3 bilhões. Quando Adalberto Rodríguez Giavarini foi nomeado tesoureiro e secretário das finanças da cidade no começo de 1996, encontrou uma situação nos moldes da descrita acima. Rodríguez, que relembrou sua experiência durante um seminário do BID sobre aquisições realizado em Washington em 1998, disse que ele e sua equipe imediatamente determinaram que a cidade estava pagando em média 30% de sobretaxas no seu orçamento de aquisições de quase US$1 bilhão.

Com um forte mandato para buscar meios de cortar despesas imediatamente, Rodríguez reuniu uma equipe altamente qualificada e fez cortes drásticos no sistema de aquisições. Primeiro, eliminou as "licitações fechadas", em que apenas um número limitado de empresas podia competir por um contrato, e ampliou a publicidade das futuras oportunidade de licitação. O resultado foi um aumento imediato no número de empresas apresentando propostas e uma queda correspondente nos preços pagos pela cidade.

Segundo, Rodríguez criou uma conta única, centralizada, para pagar todos os contratos de aquisição. Sua equipe estabeleceu um banco de dados com "preços de referência", com base em médias, freqüentemente atualizadas, dos preços de mercado de uma variedade de artigos, desde móveis de escritório a encanamentos para esgotos. Antes de fechar um contrato, os funcionários responsáveis por aquisições tinham que justificar a aceitação de qualquer preço acima do preço de referência. Ao mesmo tempo, a cidade descentralizou a parte de compras do processo de licitação, porque ao permitir que cada divisão dentro do governo municipal controlasse as compras de bens e serviços que precisasse eliminou diversos níveis de burocracia e tornou mais ágil o processo de aquisições.

Essas mudanças começaram quase imediatamente a dar dividendos concretos, disse Rodríguez. Quando a cidade de Buenos Aires requisitou novas propostas para um contrato em vias de expirar para fornecimento de serviços de alimentação para 29 hospitais da cidade, 34 companhias apresentaram propostas competitivas. O novo contrato foi fechado por pouco menos de US$32 milhões, ou 47% menos do que os US$ 59 milhões pagos ao último fornecedor pelo mesmo serviço.

Poupanças semelhantes se materializaram quando a cidade fechou novos contratos em outros setores. Rodríguez disse que Buenos Aires economizou 37% em serviços de alimentação para escolas públicas, 45% em coleta de lixo e manutenção de iluminação pública e 60% em contratos para dirigir cozinhas comunitárias. Ao todo, a cidade economizou US$200 milhões no primeiro ano após as reformas nas licitações.

A ironia é que as reformas que produziram essas poupanças não são nem radicais nem particularmente inovadoras. O que as tornou um sucesso foi a decisão política de dar prioridade ao processo de aquisições, mediante uma fiscalização forte e competente e a centralização de informações chaves sobre contratos e preços.

Nesse sentido, a experiência de Buenos Aires vai à raiz do antigo debate sobre qual a melhor maneira de eliminar os abusos nas licitações públicas. De um lado estão os especialistas que afirmam que o excesso de centralização é a causa da corrupção nas licitações em muitos países, porque coloca as decisões nas mãos de um pequeno número de burocratas que não prestam contas a ninguém. Argumentam que as jurisdições locais tendem a ser mais sensíveis à pressão dos contribuintes e que por isso o processo de aquisições deveria ser o mais descentralizado possível.

Os críticos dessa posição argumentam que os funcionários locais freqüentemente não têm a qualificação e experiência necessárias para manejar com eficiência as aquisições. De fato, Jorge Claro de la Maza, do BID, adverte que a descentralização pode na verdade aumentar a corrupção se não for acompanhada de capacitação e controles eficazes em nível municipal.

Mas o exemplo de Buenos Aires mostra que essas duas perspectivas não são mutuamente exclusivas. Ao combinar a centralização da fiscalização e do controle de informações com a descentralização das decisões sobre aquisições, os governos podem reduzir a corrupção e aumentar a eficiência. Embora a resistência política e burocrática a esse modelo possa ser considerável, pouco a pouco ela vem sendo desgastada pela influência crescente da informática e mais especificamente da Internet.

O imperativo da tecnologia on-line.
Computadores e Internet, antes uma raridade nos gabinetes governamentais da América Latina, estão se tornando rapidamente ferramentas de trabalho comuns na burocracia. Essas tecnologias, embora não aumentem necessariamente a eficiência, reduzem as barreiras logísticas e financeiras à troca de informações. Alguns governos da região estão incentivando seus órgãos públicos a colocar informações relativas a aquisições na Internet, mesmo que deixem as decisões sobre compras nas mãos de entidades individuais.

O México foi o primeiro a fazer isso, ao lançar www.compranet.gob.mx em 1996. Desde então, 25.000 empresas já puxaram do site documentos de aquisições, ao ritmo de cerca de 150.000 pedidos mensais. Os usuários podem encontrar oportunidades de aquisições passadas ou futuras, acompanhar a avaliação da proposta e o processo de adjudicação, ler esclarecimentos e emendas e saber quem conseguiu que contrato e a que preço. As empresas que compram as especificações técnicas on-line economizam 30% sobre o preço cobrado pela versão impressa. A começar este verão, os usuários terão também a opção de submeter eletronicamente as licitações e tratar de todos os aspectos do processo via correio eletrônico. Segundo cifras do governo mexicano, cerca de 40% do orçamento de aquisições da administração federal são manejados através da Compranet.

Antonio Schleske, diretor da divisão de política de aquisições do governo federal mexicano, diz que a Compranet está oferecendo agora aos clientes a opção de dirigir as transações de aquisição inteiramente através do website. Em seminário recente sobre transparência e desenvolvimento realizado na sede do BID em Washington, D.C., Schleske descreveu a tecnologia de assinatura digital e autenticação que torna seguras essas transações sem papel.

Hoje, vários outros países da América Latina e do Caribe estão também utilizando a Internet em seus esforços de reformar o setor de aquisições. No ano passado, Brasil (www.comprasnet.gov.br) e Chile (www.compraschile.cl) lançaram sites e o governo argentino anunciou planos para fazê-lo este ano. Em entrevista recente, Gastón Concha, coordenador do projeto de reforma das aquisiçoões públicas do governo, disse que a decisão de usar a Internet se baseava num estudo de diagnóstico realizado há vários anos. "O estudo descobriu que, embora o sistema de aquisições do Chile não tivesse problemas sérios de corrupção, não era muito transparente. Havia pouca informação sobre as compras do governo e o que havia carecia de precisão." O estudo concluiu também que o sistema de aquisições do Chile não estava atraindo concorrentes suficientes para assegurar a qualidade da competição, sendo por isso ineficiente.

Os resultados do estudo levaram a uma reformulação das normas e regulamentos que colocou a Internet no centro do sistema de aquisições. "Decidimos que a Internet nos daria o maior alcance possível, não só aumentando o número se fornecedores em potencial mas também permitindo que cada cidadão se inteirasse de como está sendo gasto o dinheiro público", disse Concha. "O software necessário para usar a Internet é praticamente grátis e isento de direitos autorais, o que facilita a participação de empresas pequenas e médias."

O Chile inaugurou o website de aquisições o ano passado, embora a lei que regulamente o uso da Internet para essas atividades ainda esteja sendo debatida no Congresso. Cerca de 700 empresas privadas subscreveram o uso do serviço até agora, segundo Concha, e cerca de US$700.000 em bens foram adquiridos através do sistema pelas 25 entidades do governo que participam atualmente. Concha diz que o governo espera vender US$2 bilhões pela Internet até 2002, mas reconhece que será necessário um "trabalho de catequese" junto a ministérios do governo relutantes antes que essa meta seja alcançada.

Ironicamente, uma dos motivos freqüentes de resistência é a concorrência adicional que resulta da presença na Internet. "Muitos funcionários de aquisições estavam acostumados a convocar três fornecedores, como requer a lei", diz Concha. "Agora, têm que processar 50 ofertas para cada contrato de compras. Por isso, estamos estudando meios para filtrar as ofertas para que possamos descartar as que são inadequadas no começo do processo."

Há outros obstáculos. Para captar a eficiência da Internet em sua totalidade, os funcionários de aquisições precisam ser capazes de aceitar documentos oficiais eletronicamente. A tecnologia de assinatura digital, que permite que esses documentos sejam autenticados e manejados com segurança, já está sendo usada por alguns gabinetes governamentais do Chile na condução de algumas transações eletrônicas. Mas a lei que tornará essas transações legais ainda está longe de ser aprovada, segundo informou Concha. Assim, por enquanto, a Internet será usada apenas para informar os cidadãos sobre aquisições — não necessariamente para apressar sua execução.

É óbvio que a exposição na Internet não eliminará o abuso nas aquisições governamentais. São necessários liderança política sólida, regulamentos inequívocos, melhor treinamento e auditoria simultânea para acabar com esse legado infeliz. De fato, se essas outras melhorias não forem implementadas, os sites de aquisições na Internet terão apenas um efeito cosmético sobre o problema. O simples fato de que os contribuintes estão a par do que o governo está fazendo com seu dinheiro torna mais difícil esconder os abusos.

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