Na Venezuela, a máquina da justiça começou a funcionar mais rápido.
Até 1999, a investigação de crimes na Venezuela levava, em média, 286 dias, 11 vezes mais do que estipulava a lei. Eram necessários outros 754 dias para se chegar à fase de julgamento e sentença. Os réus geralmente ficavam detidos durante todo o processo, com cerca de 75% dos 26.000 presos daquele país aguardando julgamento.
Agora, só 43% dos presidiários venezuelanos aguardam sentença, graças à profunda reforma do judiciário que começou a transformar a justiça e o sistema judiciário do país. A reforma, iniciada em 1999 após vários anos de debate, estabelece prazos de detenção de suspeitos e oferece alternativas de encarceramento. Mais importante ainda, substitui uma série de procedimentos judiciários lentos e complexos por outros que aceleram a punição dos culpados e ao mesmo tempo concedem mais direitos aos réus. O BID está ajudando a consolidar essas reformas mediante um empréstimo de US$75 milhões aprovado em novembro de 2001.
Como a maioria dos países latino-americanos, a Venezuela tem um sistema judicial com raízes no Direito Civil romano sistematizado pelo Código de Napoleão. As reformas visam modernizar essa tradição incorporando várias alterações processuais e administrativas. No passado, por exemplo, os julgamentos eram conduzidos quase que inteiramente mediante apresentação de autos por escrito e não de pleitos orais. Os réus geralmente definhavam na cadeia durante anos, enquanto as pilhas de processos tramitavam pelos tribunais. Juízes sobrecarregados eram responsáveis tanto pela investigação do suposto crime como pela respectiva sentença, prática que contribuía para os atrasos e às vezes prejudicava a imparcialidade.
Sistema híbrido. Com a reforma recente, a Venezuela adotou um sistema híbrido que conserva alguns dos elementos do passado mas incorpora o chamado processo "acusatório", no qual um membro do Ministério Público investiga e o juiz julga o caso separadamente. O novo sistema incorpora também o processo verbal, no qual suspeitos, réus, testemunhas, advogados, promotores e juízes se reúnem pessoalmente no início do processo. Essas audiências públicas pretendem estimular uma resolução mais ágil e transparente dos processos, ao contrário do método tradicional, no qual o juiz dependia quase que exclusivamente da documentação submetida pelas diversas partes.
A execução da reforma propriamente dita tem sido um processo difícil e lento. "A experiência venezuelana mostra a necessidade de muita preparação e treinamento em qualquer reforma do judiciário de grande porte", diz Raimundo Arroio Jr., líder da equipe de projeto do BID que trabalhou com autoridades venezuelanas na elaboração do pedido do empréstimo. "Não basta aprovar nova legislação. É preciso treinar promotores e juízes nos novos procedimentos. A população tem que se conscientizar de que a reforma traz novas responsabilidades, não apenas direitos. Toda a cultura do sistema judiciário precisa mudar, o que exige tempo e investimentos. Não pode ser implantada da noite para o dia."
A Venezuela tem outro desafio pela frente: segundo o novo sistema, os juízes são auxiliados por dois cidadãos leigos conhecidos por escabinos. "Estes juízes leigos não foram instruídos adequadamente", diz o professor de direito de Caracas Gonzalo Himiob Santomé, que atuou como consultor na elaboração do programa de empréstimo do BID. "Não houve qualquer campanha para conscientizar os cidadãos a respeito das mudanças e das novas responsabilidades. Ao serem convocados, inventam desculpas para não servir. Têm medo. Fazem o possível e o impossível para não comparecer."
Himiob Santomé calcula que levará cinco anos até que a reforma venezuelana possa ser aplicada com eficácia. Ressalta que a lei já foi alterada duas vezes desde que foi promulgada. No entanto, afirma, "o saldo tem sido positivo". Até bem pouco tempo, um suspeito era preso e podia ficar 16 dias na cadeia antes de ser indiciado. "Agora o suspeito tem que ser levado perante um juiz no prazo de 48 horas. O novo método é investigar primeiro para indiciar depois."
Mas o processo judicial ainda é demorado e o número de ações pendentes é assustador. Além da capacitação de promotores, juízes, advogados, policiais e cidadãos comuns, o sistema judicial terá que investir em automação e informática a fim de agilizar os casos pendentes e futuros. O programa de empréstimo do BID atacará estes e muitos outros problemas, tais como a reabilitação de ex-presidiários.
O pesquisador Máximo Langer, da Universidade de Harvard, relembra sua experiência como advogado na Argentina em 1992, quando a justiça federal daquele país também passou de um sistema documental para um sistema de argumentação verbal. "O problema foi superar a cultura enraizada do sistema tradicional", diz Langer. "O resultado foi que promotores e juízes passaram a usar ambos os sistemas, escrito e oral, e não houve qualquer ganho de tempo."
Langer destaca que durante os anos 90, apesar dessas dificuldades, vários outros países latino-americanos levaram adiante amplas reformas de seus sistemas de justiça penal, as quais introduziram alguma forma de processo verbal. Esses países foram a Guatemala em 1994, El Salvador em 1998, o Paraguai em 1999, o Chile desde 2000 e a Bolívia e o Equador em 2001. A Costa Rica adotou o sistema verbal em 1975 e está levando a cabo um amplo programa de modernização em outras áreas tais como informatização.
Réus x criminosos. Langer e outros juristas afirmam que os proponentes da reforma judicial na região tinham dois objetivos aparentemente contraditórios para grande parte da população. Por um lado, havia o desejo de conferir maior proteção aos direitos humanos através de um processo judicial mais transparente e justo– política que refletia a democratização dos anos 80. Por outro, os índices crescentes de crimes violentos resultavam em pressões para tornar o sistema de justiça penal mais eficiente e tirar os infratores das ruas.
"Os países estão fazendo as duas coisas ao mesmo tempo", diz Christina Biebesheimer, especialista legal do BID. "Sempre houve uma certa tensão quanto a isso." Embora a criminalidade e a violência sejam "problemas imensos", continua, autoridades e sociedade civil entendem também que "o réu não pode ficar trancafiado eternamente sem qualquer tipo de acusação formal. Um sistema de justiça penal mais eficiente é apenas um dos elementos na luta contra o crime. Não vai solucionar a enorme taxa de desemprego, nem vai eliminar a violência doméstica."
Margaret Popkin, diretora executiva da Fundação pelo Devido Processo Legal, de Washington, D.C., acredita que é difícil vender ao cidadão latino-americano médio a idéia de que os réus de processos penais devem ter maiores direitos. Do lado positivo, diz ela, após o típico programa de reforma, "a polícia não pode mais depender de métodos coercivos. As provas inadequadas são rejeitadas." Mas essas mesmas salvaguardas produzem uma reação popular, onde "as pessoas culpam as reformas pelos graves problemas de criminalidade que enfrentam".
Embora sejam poucos os estudos mais aprofundados sobre as reformas recentes, já existe uma boa experiência acumulada com a transição de sistemas documentais para processos verbais para se criar um clima propício a ampliar essas reformas, segundo Juan Enrique Vargas, diretor executivo do Centro de Estudos sobre Justiça nas Américas, com sede em Santiago, Chile. Ele prevê que variações em torno do sistema verbal serão adotadas algum dia em toda a América Latina.