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A hora e a vez da "terceira via"

Suponhamos que um grupo de pessoas de uma localidade remota de um país latino-americano se organize e decida realizar um projeto que melhore as condições de vida da localidade. Como inúmeras outras ONGs incipientes, o grupo depende quase inteiramente de seu capital humano e tem pouco conhecimento dos programas de governo, direitos e trâmites legais, levantamento de recursos, ou quaisquer outras dimensões formais de seu relacionamento com a sociedade. No entanto, essa ONG modesta pode ser eficaz onde o governo não foi capaz de fornecer serviços.

Em muitos países, isso seria o fim da história. A ONG poderia sobreviver por muitos anos em seu estreito raio de ação, mas não cresceria para além desses limites. Para se expandir, é muito provável que o grupo teria de obter personalidade jurídica e preencher uma ampla série de requisitos de regulamentação. Em alguns países o sistema de regulamentação poderia na verdade desestimular a participação plena do grupo na vida pública.

Num exemplo oposto, essa nova ONG poderia ter a sorte de atuar num país em que o governo apóia e colabora ativamente com organizações informais, capacitando-as a crescer, melhorar e finalmente fazer parte do programa nacional de desenvolvimento.

Nascida do declínio do autoritarismo e estimulada pelos ventos da democracia, a sociedade civil da América Latina e do Caribe emergiu espontânea e explosivamente. Ninguém conhece precisamente o número de organizações da sociedade civil existentes na região atualmente, mas supõe-se que exceda um milhão. Mais da metade se ocupa de causas sociais e humanitárias que se sobrepõem aos serviços prestados pelos governos. Outras atuam monitorando os atos administrativos do governo em áreas como transparência fiscal, inclusão social, meio ambiente ou direitos humanos. Existem organizações que fazem um trabalho admirável, dispondo apenas de um punhado de voluntários e recursos escassos, e outras cujas instalações, recursos humanos e financiamento são comparáveis aos de grandes órgãos do governo.

Criar entraves ou capacitar? Agora que as ONGs se tornaram onipresentes na vida pública, muitos países tentam estão tentando definir exatamente como essas organizações devem ser regulamentadas e que diretrizes devem ser adotadas para tornar mais produtivas suas relações com o Estado. Janine Perfit, especialista da Divisão de Estado, Governo e Sociedade Civil do BID, está ajudando a definir como o Banco pode auxiliar os países membros a atingir esses propósitos. Primeiro, diz ela, o Banco precisa ter um conhecimento detalhado do que as próprias organizações da sociedade civil estão propondo. "O trabalho das organizações da sociedade civil ultrapassam os domínios da atividade privada, estendendo-se ao âmbito público, e é importante criar um sistema de normas básicas que definam seu campo de atividades", diz Perfit.

Hoje, as diferenças estatutárias de um país para outro são enormes, com grande implicações para o trabalho das associações locais. "A situação das ONGs na América Latina e no Caribe é bastante desigual", diz o advogado venezuelano Antonio Itriago Machado. "Alguns países têm governos que exercem forte controle e outros permitem bastante liberdade." Este é o caso da Venezuela, onde, segundo Itriago Machado, uma criança de sete anos ou uma ONG podem se tornar pessoas jurídicas em meia hora.Em outros países, a dificuldade em obter status legal é usada como um fator de discriminação para determinar acesso a recursos oficiais e a cooperação institucional. Os governos podem manipular esses mecanismos legais e assim marginalizar grupos ou setores que julgam ameaçadores. De fato, em muitos países, as leis sobre sociedades civis remontam aos tempos das ditaduras militares. "As sociedades civis não deixam de ser um reflexo do processo histórico de que nasceram e do qual fazem parte", comenta Peter Sollis, especialista do BID nessa área. "Esta região tem um passado político extremamente polarizado e, em geral, um processo de democratização que ainda está engatinhando."

Essa realidade criou uma situação em que coexistem ONGs formais e informais em muitos dos países da região. As que dispõem de recursos obtêm status legal, mas é possível que mais da metade das organizações da sociedade civil da América Latina e do Caribe sejam associações informais.

Como regulamentar. Alguns especialistas crêem que a combinação de formalidade com informalidade não é necessariamente um mal. "Essa fronteira precisa permanecer aberta, flexível", argumenta Giancarlo Quaranta, analista do CERFE, um grupo de pesquisa sem finalidade de lucros com sede em Roma. “De outra forma”, diz ele, “a enorme riqueza do setor informal pode se perder sob o peso de regulamentações impostas prematuramente.”

Um dos riscos do isolamento do setor informal, de acordo com os estudiosos da questão, é estimular a falta de responsabilidade em relação aos padrões de transparência e prestação de contas que se aplicam a instituições formais. Aqueles que defendem uma abordagem mais regulamentada da situação jurídica das ONGs, como o advogado colombiano Rafael Mateus Hoyos, afirmam que isso "garante a continuidade por muito tempo e permite que as organizações informais sobrevivam às pessoas que as criaram e administraram".

Mas o debate formalidade versus informalidade é apenas um dos problemas que as sociedades civis da América Latina e do Caribe enfrentam. Na prática, trâmites burocráticos complexos e demorados, normas arbitrárias e inflexíveis, bem como a dispersão de responsabilidades pelos diferentes ministérios são alguns dos entraves à participação plena das organizações cívicas nas agendas nacionais.

O BID trabalha há vários anos com projetos para ajudar a criar as condições legais que facilitem às ONGs manter um relacionamento produtivo e cooperativo com os governos de seus países.

Outros obstáculos. Além dos entraves legais, as sociedades civis enfrentam outros tipos de bloqueios. Pesquisas encomendadas pelo BID revelam uma ampla consciência de que regulamentos restritivos, obscuros e contraditórios tornam difícil para as ONGs a obtenção de recursos. Grupos da sociedade civil queixam-se, também, dos parcos incentivos fiscais disponíveis para essas organizações e da falta de conexões com o governo e o setor privado.

Tão importante quanto essas limitações legais é o ambiente sociocultural que alimenta desconfiança e indiferença. A compreensão limitada do papel da sociedade civil resulta na falta de apoio popular a um sistema de regulamentação mais favorável e essa insuficiência estrutural, por sua vez, cria uma desconfiança em relação às organizações da sociedade civil. "Uma das principais descobertas que fizemos é a existência de uma barreira jurídico-social", explica a especialista do grupo CERFE Marina Cacace, chefe da equipe que realizou os estudos para o BID. "É como um círculo vicioso: as leis afetam a realidade social que, por sua vez, afeta as leis."

Em resumo, a sociedade civil necessita ganhar a confiança do governo e dos cidadãos. O direito de associação e de participação exige como contrapartida responsabilidade, democracia e transparência. "O dever das organizações não-governamentais de prestar contas é decisivo para a eliminação do clima de desconfiança onde ele exista", segundo Cacace. "Há ainda a questão dos métodos pouco democráticos que muitas instituições civis usam para eleger seus líderes. Tudo isso tem a ver com a auto-regulamentação, ou com o grau de abertura e responsabilidade a que essas organizações se obrigam internamente." Um meio de tratar esses problemas é fomentar as chamadas "ONGs secundárias", como as redes e associações que estabelecem padrões e fornecem diretrizes a seus integrantes.

Um caminho a seguir. Funcionários do BID acreditam que qualquer tentativa de propor soluções para os desafios enfrentados pelas complexas e dinâmicas organizações da sociedade civil da América Latina precisa ser baseada no conhecimento das condições locais.

Um levantamento dos cinco países que foram objeto do estudo do BID permitiu à CERFE apresentar um esboço da situação. Como cada país tem condições particulares e se encontra numa fase diferente de desenvolvimento democrático, as mesmas normas não podem ser aplicadas a todos, de acordo com as opiniões manifestadas pelos que participaram do estudo. Duas preocupações urgentes, contudo, são os obstáculos à associação com os governos e o acesso a financiamentos. O CERFE concluiu que, sem eliminar as formalidades burocráticas e sem descentralizar órgãos administrativos do governo, o acesso das sociedades civis aos recursos continuará sendo difícil.

Reformas legislativas só serão eficazes se apoiadas numa série de políticas inovadoras de sustentação. "Tanto os funcionários de governos quanto os líderes de grupos da sociedade civil necessitam de treinamento especial", diz Cacace. "Muitas vezes as leis são adequadas, mas sua interpretação é restritiva ou errônea.” O trabalho indispensável que as sociedades civis realizam se beneficiaria grandemente do reconhecimento e apoio popular e para isso o CERFE propôs campanhas públicas de conscientização. No âmbito internacional, a adoção de uma carta de princípios das sociedades civis teria o efeito duplo de promover medidas políticas internas e fortalecer a cooperação regional entre os países.

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