Leonardo Reales é um colombiano descendente de africanos. Em 1993, quando cursava ciências políticas na Universidade dos Andes, em Bogotá, era um dos poucos estudantes de etnia negra em 10.000 universitários. Ele se lembra que seus colegas comentavam: "Você deveria sentir-se orgulhoso". Algum tempo depois, Reales entrou para o prestigioso Batalhão da Guarda Presidencial. Numa companhia de 300 guardas, ele era um dos três descendentes de africanos.
Certa ocasião, quando alguém lhe fez uma pergunta relacionada com a escravidão, Reales ficou desconcertado ao comprovar que desconhecia o nome de grande número de países africanos. "Dei-me conta de que, na escola, jamais nos haviam ensinado a história ou a geografia da África, nem no curso primário nem no secundário".
Reales, que é hoje representante da União Nacional de Organizações Afro-colombianas, em Bogotá, compartilhou suas experiências com outros 20 líderes afros da América Latina e do Caribe, convidados pelo Indes (Instituto Interamericano para o Desenvolvimento Social, do BID) a participarem, em Washington, de um curso de gestão de desenvolvimento social. Muitos de seus comentários encontraram eco nos de outros participantes. A alienação, os estereótipos, os insultos disfarçados de simpatia, as expectativas frustradas de justiça e progresso - tudo isso parece ser parte da realidade cotidiana de milhões de descendentes de africanos nos países da região.
Estima-se que existam aproximadamente 150 milhões de descendentes de africanos na América Latina e no Caribe, números que os recenseamentos não parecem refletir. A ausência de números, informações e estudos sobre esse segmento da população atuou como uma cortina de fumaça que tornou invisíveis milhões de pessoas do ponto de vista de políticas públicas. (Ver o link ao lado, “Cidadãos invisíveis?”)
Uma das conseqüências diretas dessa representação deficiente - em muitos casos, ausência total - de descendentes de africanos em recenseamentos e estatísticas foi a sua marginalização das agendas políticas de seus países. Por exemplo, em 1993, o censo da Colômbia indicava a presença de 500.000 afro-colombianos, quando se estimava que o número correto, na realidade, beirava os 7 milhões. "Isso se traduziu em nossa participação ínfima em cargos públicos e administrativos e em apenas 0,01% da população de estudantes universitários", diz Reales.
Como começar. "É um círculo vicioso difícil de se romper", confessa Mia Harbitz, especialista regional do BID. "Oitenta por cento vivem na pobreza. O acesso a escolas é limitado e eles têm problemas com os serviços de saúde e educação." Sem os recursos necessários, esses grupos de marginalizados não podem participar da sociedade civil.
Dentro do plano de ação do BID para combater a exclusão social por motivos étnicos ou raciais, o Indes se dispôs a organizar um curso de gerência social para líderes afros. O primeiro desafio era contornar a ausência de dados e encontrar indivíduos que pudessem participar do curso e com isso provocar mudanças para beneficiar suas comunidades. Como trabalho preliminar à elaboração do curso, o instituto enviou missões a três países da região - Honduras, Equador e Brasil - com um objetivo muito concreto: identificar grupos representativos de descendentes de africanos e descobrir quais eram seus interesses e necessidades prioritários na área de capacitação.
As missões revelaram que as comunidades de descendentes de africanos só recentemente começaram a identificar-se como tais e a organizar-se para uma representação política efetiva. " Os indígenas, em comparação, estão mais identificados com sua cultura", diz Harbitz. "Estão organizados como povos há 30 anos pelo menos. Entre os afro-latinos não existe um laço unindo todos."
Os próprios descendentes de africanos reconheceram isso durante as oficinas organizadas por Mia Harbitz nos três países. A falta de organização e documentação sobre sua história teve um impacto direto sobre a auto-estima das comunidades de descendentes de africanos. O resultado foi a falta de uma identidade política própria e a invisibilidade social. "Se algo nos une são as carências”, confessava, há tempos, um líder afro-costa-riquenho. "É a pobreza, a exclusão, a invisibilidade."
Laboratório experimental. Para sair desse círculo vicioso precisa-se de líderes afros com os conhecimentos e o preparo necessários para participar de programas de desenvolvimento e intervir nos processos políticos locais e nacionais.
Por isso, o curso organizado pelo Indes teve um efoque puramente prático. Aprender a executar projetos e redigir informes, planejar estratégias, negociar, escutar, resolver conflitos, preparar um orçamento ou entender o processo de tomada de decisões foram alguns dos temas do aprendizado intensivo nesse mês em que os participantes estiveram em Washington.
As histórias dos 21 participantes entreabriram a porta para uma problemática pouco conhecida. Falou-se do endocentrismo na educação, da versão eurocentrista da história, da segregação interna na própria comunidade entre os negros bem-sucedidos e os marginalizados. "No começo do curso havia alguma tensão, foram feitas perguntas capciosas", comenta Harbitz. "Outros estavam céticos em relação à verdadeira motivação do BID ao organizar esse curso", acrescenta Karen Mokate, especialista do Indes e uma das instrutoras do curso.
Em pouco tempo, porém, a desconfiança desapareceu e um intercâmbio rico e estimulante começou para todos. "Essa experiência forneceu-lhes muitas das ferramentas de que necessitam para suas estratégias ", comenta Karen. "Todos aprendemos muito. Foi uma experiência muito enriquecedora."
Isabel Cruz, professora universitária do Rio de Janeiro, disse que a oficina a ajudou de duas maneiras. "Adquiri uma qualificação maior em gestão social, que me permitirá ampliar a presença dos descendentes de africanos nos processos de participação e descentralização e, por outro lado, nos ajudará a enfocar bem as políticas afirmativas que promovam o desenvolvimento de nossas comunidades." Seu compatriota Amauri Queiroz, dirigente do Instituto Palmares do Brasil, acrescenta que o curso "me ajudou a ter uma nova perspectiva de nossa organização interna, a estabelecer novos paradigmas, a melhorar nossas relações com o governo. Também me dei conta da internacionalidade de nosso trabalho e sinto que somos uma gota no oceano".
O Indes, depois de comprovar os bons resultados dessa experiência, pretende continuar oferecendo esse serviço a dirigentes de organizações de descendentes de africanos, mas com várias modificações. "Talvez não os reunamos de novo num curso especial para descendentes de africanos", afirma Mokate. "Se quisermos que se integrem verdadeiramente à agenda de seus países, temos de começar convocando-os a aprender com outros líderes de suas sociedades. Não podemos tratá-los de novo como um caso à parte." Mokate confessa que até agora, no Indes, a exclusão social era vista sob seu aspecto econômico. Mas agora, garante, o Indes considerará as dimensões políticas, culturais e lingüísticas do problema, entre outras. "Até agora, não sabíamos o quanto ignorávamos", conclui ela.