As forças armadas da América Latina, antes sinônimo de intervenção e repressão política, raramente são notícia hoje em dia. Os cidadãos da região estão menos preocupados com um golpe de Estado do que com emprego, saúde ou educação de seus filhos.
Mas embora a atenção do mundo esteja em outros temas, praticamente todos os países latino-americanos encontram-se às voltas com a delicada restruturação do relacionamento entre militares e civis.
A reforma militar raramente é vista com grande interesse pelos políticos, uma vez que não atrai votos. As próprias forças armadas naturalmente resistem a qualquer intervenção que possa reduzir seus privilégios e poder. Mesmo assim, a reforma militar avançou a passos lentos mas seguros ao longo dos últimos 20 anos na América Latina e no Caribe. Talvez o indicador mais evidente dessa evolução seja o fato de que civis estão à frente dos ministérios da defesa de praticamente todos os países da região. Tradicionalmente, esse posto era reservado a um oficial graduado da ativa, fato que ressaltava a autonomia das forças armadas diante do resto do governo. O Chile, país outrora conhecido pela enorme influência de suas forças armadas, é o exemplo mais saliente de como as coisas mudaram. Seu ministério da defesa hoje é chefiado por uma mulher civil, Michelle Bachelet, socialista e filha de um general chileno que foi torturado e morto na prisão durante a ditadura de Pinochet (ver Marchando à frente dos soldados, veja o link à direita).
Os países latino-americanos também aprenderam com democracias mais antigas e consolidadas que atravessaram transformações semelhantes num passado não muito distante. Por razões históricas óbvias, o caso da Espanha é de particular relevância. Narcis Serra y Serra foi um dos primeiros civis a ocupar o cargo de ministro da defesa da Espanha logo que o país emergiu da longa ditadura militar imposta por Franco após a Guerra Civil Espanhola. Ao longo de nove anos, Serra trabalhou para democratizar, modernizar e profissionalizar uma corporação militar cuja autoridade tinha ido além dos limites do aceitável em qualquer sistema democrático moderno. Essa operação era considerada de tamanho risco que foi comparada por um político contemporâneo a "tentar fazer as unhas de um tigre".
A fera, porém, mostrou-se menos feroz do que se esperava. Os acordos firmados com a Comunidade Européia e a OTAN exigiam uma série de mudanças que coube a Serra implementar. A participação das forças espanholas em missões humanitárias e de paz patrocinadas pelas Nações Unidas ou OTAN, por exemplo, ajudou a dar um novo papel e legitimidade ao setor militar.
Serra atualmente assessora o BID sobre reforma militar nas iniciativas do Banco no sentido de promover a modernização do Estado na região. Durante recente visita ao Banco, ele conversou com BIDAmérica sobre a situação da reforma militar na América Latina.
BIDAmérica: Os países latino-americanos estão democratizando várias de suas instituições. A reforma das forças armadas faz parte desse processo ou independe dele?
Serra: A democratização das forças armadas é um processo que compreende múltiplas fases e começa com uma fase de transição. Praticamente todos os países da América Latina passaram por ditaduras militares, alguns há muito pouco tempo. Muitos estão nessa primeira etapa, em que o exército não mais intervém na política. Entre outras mudanças, houve redução de conflitos, foi aprovada legislação sobre defesa nacional, com a definição de novos mandatos para ministros da defesa civis, e estabeleceram-se agências federais de inteligência para garantir uma fiscalização civil dos serviços de inteligência militar. É essencial a redução da presença militar nos setores do governo que são de natureza civil, tais como os de formulação de políticas e segurança, e em outras áreas menos importantes como as de transporte aéreo e marítimo.
Alguns países já passaram para a segunda fase, na qual o governo elabora políticas para o setor militar, eliminam-se os privilégios dos militares e surge o conceito do militar profissional. Embora com um civil à frente do ministério da defesa, porém, ainda faltam medidas administrativas necessárias para fiscalizar a polícia militar, por exemplo.
Quanto à reforma da justiça militar, a maioria dos países da América Latina ainda não está em condições de fazê-la. Tendem a tropeçar no problema da responsabilização pelos crimes cometidos durante as ditaduras e conflitos armados.
BIDAmérica: Quais os obstáculos que precisam ser removidos a curto prazo para que as reformas dêem certo?
Serra: Com base na minha experiência, cheguei à conclusão de que são dois os problemas, um na sociedade em geral e outro no lado militar. O problema relativo à sociedade em geral é que, até que a democracia realmente se consolide, a população não acredita que tudo terá que se organizar de acordo com o processo democrático. Em diversos países, se o Estado não cumpre suas obrigações – em termos de educação e saúde, por exemplo –, como o cidadão comum vai acreditar que as forças armadas também devem operar dentro de um processo democrático? O problema geralmente não se resume aos militares. Decorre de instituições governamentais falhas e da atitude de líderes e da elite política. Como disse o filósofo Jaime Balmes em relação à Espanha do século 19, "o Estado não é fraco porque os militares são fortes; os militares são fortes porque o Estado é fraco".
Os militares vêm adotando uma postura mais profissional como corporação, mas não em todos os países e apenas muito gradativamente. Os militares tendem a se considerar uma instituição autônoma, com seus próprios interesses e função dentro da máquina do governo. Entretanto, nas democracias estáveis, como na Europa Ocidental, as forças armadas são parte integrante da máquina do Estado, da mesma forma que professores e médicos. É preciso tempo para se chegar a esse ponto, além de um programa em etapas que transforme a mentalidade militar, aceitando-se o fato de que os militares são úteis como peça da máquina estatal especializada em segurança e no uso da força quando acionada pelo Estado.
BIDAmérica: Vários países da região enfrentam o problema de grupos de ex-guerrilheiros e forças armadas cujo histórico é controvertido e não resolvido no que tange a direitos humanos. Essas questões impedem a democratização ou constituem um outro problema?
Serra: A eliminação de conflitos internos não significa o fim desses problemas. Basta ver o caso de El Salvador. A situação hoje está muito melhor que antes, mas os problemas não foram superados. Os antigos guerrilheiros estão desempregados, há uma crise econômica no país e o padrão de vida decaiu. Esses fatores trouxeram um aumento de insegurança e criminalidade.
O problema de adaptar as forças armadas a um sistema democrático se agrava ainda mais quando o exército participou de alguma luta interna, como uma guerra civil. Na América Latina, essa situação ocorreu em muitos casos. Na Espanha, a transição dos militares para um regime mais democrático deu-se muitos anos após o término de nossa guerra civil, quando as feridas por ela causadas já haviam cicatrizado. Não é o caso em vários países latino-americanos.
BIDAmérica: Como os cidadãos comuns sabem que as forças armadas de seu país estão em processo de democratização? Será que se dão conta?
Serra: Uma das melhores formas de melhorar a imagem dos militares é dar-lhes missões especiais em prol da democracia. Na Europa, especificamente na Espanha, as missões que legitimaram as forças armadas foram de apoio às Nações Unidas, como por ocasião do plebiscito pela independência da Namíbia, na crise iugoslava e no desarmamento dos contras na Nicarágua. Foi muito positivo para o exército prestar um serviço útil no estrangeiro. Defendi muito uma participação ainda maior do exército espanhol em missões conjuntas com as Nações Unidas. Em vários países, vêem-se as forças armadas realizando missões de cunho humanitário, como no caso de calamidades naturais. Na América Latina também prestaram grandes contribuições à sociedade. Sua atuação não só ajuda os esforços de manutenção da paz no mundo inteiro como também põe os militares em contato com seus colegas de farda de outros países e os ensina a lutar pela paz em vez de guerrear.
Outra função positiva para o exército se dá através da cooperação regional, promovendo maior confiança entre países vizinhos e coordenando as operações de suas forças armadas. No Cone Sul, um exemplo excelente são Argentina e Chile. Os dois países estiverem à beira de um conflito armado devido a questões de fronteira, mas agora têm ótimas relações de cooperação. O maior navio de guerra da Argentina, por exemplo, foi modernizado no Chile.
BIDAmérica: Falemos de orçamento. Em recente discurso no BID, o ex-presidente da Costa Rica, Carlos Arias, abordou a questão dos gastos militares, dizendo que manter em sigilo os orçamentos militares era "uma forma de corrupção". Qual é sua opinião?
Serra: A transparência é crucial. Não se deve associar segurança militar com negócios escusos e falta de transparência. Não há nenhuma razão hoje em dia para qualquer país deixar de ser totalmente transparente sobre seus gastos militares. Os governos têm que fiscalizar esses gastos e manter o poder de decisão. Além do mais, executivo e legislativo devem colaborar em questões ligadas à defesa. A associação entre o setor militar e sigilo precisa ser substituída por uma associação entre segurança e transparência.
A região não investe muito em gastos militares, como porcentagem do produto interno bruto de seus países, de forma que não creio que o volume desses gastos seja o principal problema. Acho que seria utopia acreditar que algum dia os militares vão desaparecer da América Latina, uma vez que o tema está ligado a uma questão de soberania.