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A ética e o desenvolvimento podem coexistir?

Ética e economia? Praticamente incompatíveis, dizem muitos, como a mistura de óleo com água.

Mas o que dizer de vincular ética e desenvolvimento? É difícil, mas não impossível, pelo menos segundo os 30 participantes que estiveram presentes a uma reunião do BID para examinar como considerações de ordem moral poderiam ser instiladas na "nova economia" que, às vezes, deixa muitos marginalizados.

Amartya Sen, economista indiano que ganhou o prêmio Nobel de economia em 1998, enfatizou o valor dos aspectos não-materialistas do desenvolvimento.

"O desenvolvimento dificilmente pode ser visto apenas em termos de melhoria dos objetos inanimados de utilidade, como aumentos do PIB, ou o processo de industrialização ou avanço tecnológico, ou a modernização social", disse ele. "Existem, é claro, realizações valiosas — e muitas vezes de importância crucial. Mas seu valor precisa depender de seu efeito na vida e liberdade das pessoas envolvidas."

A conferência de dois dias foi organizada pelo Instituto Interamericano de Desenvolvimento Social do BID e patrocinada pelo governo da Noruega. A lista dos palestrantes incluiu conhecidos economistas, personalidades políticas e filósofos.

Enrique V. Iglesias, presidente do BID, observou em seu discurso de abertura que a era do computador tinha exacerbado a injustiça já existente e que atualmente "as necessidades não atendidas e o hiato entre ricos e pobres está crescendo".

No âmago do problema está "o direito de não ser excluído", disse Iglesias, comentando que as estatísticas sobre distribuição da riqueza mostram que a América Latina é a região mais desigual no mundo.

A reforma e modernização inexoráveis da economia da região acabaram com as salvaguardas comerciais de que o setor privado costumava desfrutar e desmantelaram ou privatizaram uma grande parcela da máquina do governo. Deixaram, em sua esteira, um nível de desemprego nunca antes visto em certos países.

O agravamento subseqüente da desigualdade reflete as diferenças na educação — ou no bom senso —, na capacidade de as pessoas aproveitarem as oportunidades que a "nova economia" criou ou ficarem para trás. Nem mesmo os Estados Unidos escaparam a esse aumento da desigualdade.

O ex-presidente do Chile PatricioAylwin mostrou em seu discurso que, desde a Conferência de Cúpula das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Social em 1995, em Copenhague, o número de pessoas que vivem na pobreza na América Latina e no Caribe cresceu de 196 milhões para 224 milhões.

Em sua opinião, a atual cultura ocidental voltada para o mercado levou ao predomínio do individualismo, refletido em "egocentrismo, consumismo e competitividade".

"Embora a economia internacional esteja crescendo a taxas nunca antes observadas, esse crescimento afeta a população mundial de uma forma extremamente desigual", comentou. "A economia de livre mercado neste mundo globalizado é muito eficiente na criação de riqueza, mas muito injusta em sua distribuição", concluiu.

Fundamentalismo econômico. O ex-presidente da Argentina Raúl Alfonsín denunciou o "fundamentalismo econômico", afirmando ser inspirado pelos que desejam o desmantelamento do Estado. Este objetivo, disse ele, mina as conquistas sociais "e deixa milhões de pessoas indefesas, muito embora só pretendam viver com dignidade, ter comida, educação, moradia e tratamento da saúde".

"O antigo Estado ineficiente tornou-se um Estado irresponsável: irresponsável para com o pobre, o doente, o não-educado, o marginalizado, o ancião e o jovem", afirmou Alfonsín em seu discurso. "Pode ter sido um Estado inchado, mas agora é um Estado indefeso", arrematou.

O economista Joseph Stiglitz, da Universidade de Stanford, ressaltou o papel especial dos economistas que assessoram altos funcionários do governo nos países em desenvolvimento. Argumentou que tais conselheiros deveriam ater-se a normas que assegurem a coerência e a honestidade. O filósofo Peter Singer, da Universidade de Princeton, defendeu a necessidade da conduta ética por parte das nações ricas e organizações financeiras internacionais.

George A.O. Alleyne, diretor da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), tratou da área de saúde e afirmou que uma abordagem abrangente desse aspecto do desenvolvimento é crucial para o alívio da pobreza.

"Em muito poucas situações a vulnerabilidade que caracteriza a pobreza é tão acentuada quanto no campo da saúde", disse Alleyne, comentando que o investimento em saúde pública é uma forma de promover o crescimento.

Sigrun Mogedal, secretária de Estado para o desenvolvimento internacional da Noruega, país que patrocinou a reunião, resumiu o que ela considera as responsabilidades morais de todos os agentes da economia.

"Os governos têm de fato a responsabilidade moral de orientar o desenvolvimento para o que é justo e eqüitativo", disse ela. "Colocar eqüidade, inclusão e participação no centro da nossa agenda comum é o imperativo ético mais forte do desenvolvimento."

Bernardo Kliksberg, organizador da reunião e coordenador do Instituto Interamericano de Desenvolvimento Social do BID, analisou o impacto dos agudos problemas sociais da região sobre a criança e a família. Observou, particularmente, que 36% das crianças abaixo de dois anos de idade sofrem de desnutrição. E realçou o efeito da pobreza e do desemprego na destruição de numerosas famílias.

A agenda do encontro tratou de diversos dilemas éticos criados pelo processo de desenvolvimento, especialmente na América Latina, ressaltando o impacto da globalização e do progresso tecnológico sobre a pobreza e a desigualdade. Espera-se que a partir daí haja incentivo para uma discussão multidisciplinar desses assuntos.

Iglesias concluiu o debate dizendo que a reunião refletiu a essência do BID, como "algo mais do que um banco que transfere recursos e proporciona cooperação técnica". A finalidade do evento, disse ele, "não era oferecer soluções, porque não temos nenhuma, mas estimular e legitimar a discussão dessas questões."

Sen, que fez o discurso de encerramento, rejeitou a noção de que procurar a eqüidade no desenvolvimento prejudicaria os esforços para se alcançar eficiência, afetando particularmente o uso de incentivos.

"Na verdade, prestar atenção à eqüidade em muitas circunstâncias ajuda a promover a eficiência… porque o comportamento das pessoas pode depender de seu senso de eqüidade e da forma como percebem se a conduta dos outros é eqüitativa", concluiu o prêmio Nobel.

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