A imagem pública dos mercados de ações da América Latina sofreu um pesado baque em outubro. Após uma década de ganhos expressivos, os índices de ações da região passaram a ser vistos como barúmetros que estimulavam a confiança interna e internacional nas perspectivas econúmicas da América Latina.
Mas quando uma seqüência de crises monetárias no Sudeste asiático provocou uma "correção" do mercado global de ações, as bolsas latino-americanas mergulharam em parafuso, perdendo mais de um quarto de seu valor em poucos dias. Apesar de alguns sinais iniciais de recuperação, a maioria dos índices de ações da região ainda está longe dos níveis anteriores a outubro.
No período seguinte a esses acontecimentos, os investidores colhidos em meio ao tiroteio e os cidadãos comuns de toda a região passaram a se perguntar se não fora exagerada a expectativa em torno dos mercados de valores mobiliários. Teriam as economias da América Latina se tornado reféns do crescimento acelerado de seus mercados? Não seriam esses mercados apenas cassinos complicados em que especuladores e estrangeiros ricos fazem suas apostas? Indo mais a fundo ainda na questão, será que esses mercados trazem de fato benefícios à economia real de pessoas, produtos e empregos?
Em 7 de outubro, enquanto a crise do mercado de valores se alastrava, funcionários das áreas financeira e cambial de diversos países latinos se reuniram na sede do BID em Washington, D.C., para analisar algumas dessas questões. Na verdade, a conferência "O desenvolvimento dos mercados de capitais nas economias emergentes: obstáculos e precondições para o sucesso", que teve dois dias de duração, ofereceu no momento certo a oportunidade de se avaliar a extraordinária evolução dos mercados acionários latino-americanos nos últimos anos.
Há cerca de uma década, na maioria dos países latino-americanos praticamente não se percebia a presença dos mercados de valores mobiliários como parte do setor financeiro, que sempre fora dominado pelos bancos. Considere-se o exemplo da Argentina. Embora a bolsa de valores de Buenos Aires tivesse mais de um século de existência, em 1989 a sua capitalização de mercado (o valor total das ações, das obrigações e de outros papéis registrados na bolsa) era de apenas US$172 milhões, de acordo com Guillermo Harteneck, presidente da Comissão Nacional de Valores da Argentina.
Mas em poucos anos essa situação mudou dramaticamente. Um pacote de reformas comerciais e financeiras orientadas para o mercado estabilizou a economia, renovou o interesse do investidor pela Argentina e facilitou o investimento estrangeiro direto. Um plano ambicioso de privatização deu aos investidores comuns acesso a algo de que eles antes raramente desfrutavam: a oportunidade de comprar ações de uma lista de empresas de primeira linha do setor industrial. Milhões de dólares da poupança argentina estacionados em bancos estrangeiros foram repatriados para a compra dessas ações e os fundos de investimento europeus e americanos logo seguiram o exemplo. O resultado foi um crescimento espetacular no mercado acionário. Apesar da grave desaceleração que se seguiu à crise do peso mexicano de 1995, a capitalização de mercado da bolsa de valores de Buenos Aires alcançou US$60 bilhões em 1997.
Embora no final da década de 80 os mercados de valores mobiliários de outros importantes países da América Latina passassem por estágios bastante diferenciados de desenvolvimento, a sua experiência nos anos 90 apresentou, em termos gerais, ampla semelhança com a da Argentina. De acordo com a Corporação Financeira Internacional, em 1987 a capitalização total de mercado das principais bolsas da região girava em torno de US$37 bilhões. Em outubro de 1997, estava ao redor dos US$515 bilhões, depois de ter atingido o pico de US$680 bilhões em julho.
MENOS DO QUE OS OLHOS ALCANÇAM.
Ainda assim, esses números não são tão impressionantes quanto parecem. Para começar, os mercados de capitais da América Latina são ainda muito pequenos se comparados às economias que estão por trás deles. Em 1996, a capitalização de mercado total da região chegava a cerca de 30% de seu produto interno bruto. Claudio Loser, diretor do Departamento do Hemisfério Ocidental do Fundo Monetário Internacional, lembrou aos participantes da conferência que em muitos países asiáticos em desenvolvimento, como a Tailândia e as Filipinas, essa relação era de 100% em 1996.
Além disso, a explosão do mercado de ações da América Latina está beneficiando primariamente um grupo pequeno de empresas públicas recém-privatizadas e de companhias do setor industrial que têm ações de primeira linha. Ainda que as grandes bolsas de valores da região contem às centenas os registros de companhias, o grosso de sua capitalização de mercado e do seu volume de negócios se deve a algumas poucas empresas gigantes nas áreas de telecomunicações e energia. No Brasil e no México, aproximadamente metade do volume das transações no mercado em um dia típico envolve ações da principal companhia telefúnica de cada país.
Em outras palavras, para a grande maioria das empresas da América Latina o capital não provém dos mercados de ações. "Apesar dos avanços impressionantes no desenvolvimento dos mercados de capitais, os bancos da região são ainda a fonte predominante de financiamento para o setor privado", afirmou Liliana Rojas-Suárez, assessora principal do Escritório do Economista-Chefe do BID. Os empréstimos bancários respondem por bem mais de 90% de todo o financiamento corporativo da região, de acordo com Rojas-Suárez. Já nos Estados Unidos, os bancos contribuem com apenas 20% das necessidades globais do financiamento corporativo. As companhias conseguem financiamento mais barato e mais flexível emitindo ações, obrigações e papéis comerciais diretamente para os investidores, por meio de vários mercados e bolsas de valores.
Rojas-Suárez observou que o subdesenvolvimento dos mercados mobiliários da América Latina se deve em parte ao fato de que muitas companhias ainda relutam em preencher os requisitos para se registrar nas bolsas. Apesar de muitas empresas terem aberto o seu capital, e de algumas terem até mesmo preenchido os requisitos rigorosos para o registro na Bolsa de Valores de Nova York, a propriedade da maioria das grandes empresas latino-americanas concentra-se ainda em pequenos grupos que preferem não ceder sequer o controle parcial de suas companhias aos acionistas. Muitas companhias também relutam em divulgar suas receitas e seus ativos, como se exige de empresas que têm ações negociadas em bolsas, por acreditarem que a divulgação aumentará as suas obrigações fiscais, ajudará seus concorrentes ou até mesmo as tornará alvos de seqüestradores devido à divulgação dos salários de seus executivos. Dessa forma, embora o valor de mercado de um pequeno grupo de companhias de primeira linha tenha crescido exponencialmente, o aumento no número total de novas empresas registradas nas bolsas da região foi muito pequeno. No México, no Brasil e na Argentina, que juntos respondem por cerca de dois terços da capitalização de mercado da região, a curva da quantidade de companhias registradas tem permanecido essencialmente achatada desde 1987.
Conseqüentemente, "existe uma clara demanda por novas colocações , mas uma oferta muito pequena", disse Harteneck da Argentina. "As companhias não compreendem os benefícios da abertura de seu capital, área em que ainda é necessário um grande esforço educacional."
QUANTO MAIS PROFUNDO, MELHOR.
O problema real dos mercados de valores mobiliários latino-americanos não está no fato de que eles cresceram rápido demais, mas na falta de aprofundamento. Os economistas se referem à "profundidade" dos mercados de capitais para descrever o número e a variedade dos títulos entre os quais os investidores podem escolher, a quantidade e a qualidade das informações sobre as companhias que podem ser usadas pelos investidores para fundamentar as suas decisões e a liquidez geral dos mercados em relação ao volume de negócios. Por esses parâmetros, os mercados de ações da América Latina são extremamente "rasos".
Essas deficiências podem ter efeitos muito tangíveis sobre a economia real. Isso porque, além de proporcionar uma alternativa para o financiamento bancário, os mercados de valores mobiliários que funcionam de maneira satisfatória oferecem uma destinação diferente e mais produtiva para a poupança interna. Nas décadas hiperinflacionárias de 70 e 80, essa discussão não saía do campo teórico, porque a maioria dos países latino-americanos poupava muito pouco. Mas, com a estabilidade monetária que acompanhou as reformas estruturais, as taxas de poupança interna começaram a subir. E, em boa parte dos maiores países da região, a reforma da previdência social está fornecendo incentivos adicionais para a poupança, ao possibilitar que os trabalhadores depositem todas as suas contribuições previdenciárias, ou parte delas, em fundos de gestão privada.
De acordo com o banco de investimento Solomon Brothers Inc., de Nova York, os ativos previdenciários privados latino-americanos engrossaram de apenas US$50 bilhões em 1993 para um montante estimado em US$130 bilhões em 1997 e estão crescendo cerca de US$1 bilhão por mês. As regulamentações governamentais requerem que boa parte desse dinheiro seja investida em títulos públicos, mas para diversificar as suas carteiras e melhorar as taxas de rentabilidade os gerentes dos fundos demonstram grande interesse pela compra de ações e obrigações corporativas. E é aqui que a falta de profundidade dos mercados de ações da América Latina se apresenta como um obstáculo real ao crescimento econúmico: por não disporem de oferta abundante de novos títulos, os ativos dos fundos de pensão e a poupança individual são forçados a definhar em obrigações públicas, em vez de alimentar o crescimento das companhias locais.
Mas não faltam indícios de que as coisas estão mudando para melhor. Os fundos de pensão e os fundos mútuos nacionais com boa posição de caixa estão abocanhando uma proporção cada vez maior de novos títulos que costumavam ser comprados inteiramente por investidores estrangeiros. Com base em entrevistas com diversos bancos de investimento que subscrevem ofertas públicas de títulos na região, The Wall Street Journal relatou recentemente que a parcela da dívida e das emissões de ações vendidas a investidores locais passou dos 10%-15% de dois anos atrás para 20%-30%, "tendo algumas companhias optado por levantar todo o capital de que precisa nos mercados locais". O jornal informa que os gerentes de fundos locais também estão começando a investir nas companhias nacionais menores - o tipo de aplicação que o investidor externo tradicionalmente ignora.
A continuar essa tendência, os verdadeiros benefícios de um próspero mercado de ações poderão vir a ser sentidos por milhões de trabalhadores. "Esse tipo de investimento complementa o capital estrangeiro e, em última instância, ajuda a reduzir a vulnerabilidade das economias locais aos choques externos", afirma Rojas-Suárez do BID.