Erick Tejada Sánchez
Nota do Editor: O autor deste artigo foi o terceiro colocado no Concurso de Bolsas BIDAmérica 2005. Ele estuda sociologia na Universidad Nacional de San Augustín, em Arequipa, no Peru.
Em muitas aldeias dos Andes peruanos, o consumo de álcool atinge níveis alarmantes. Até a década de 1990, isso era também o que acontecia em Tuti, uma pequena comunidade no vale do rio Colca, cerca de 4.700 metros acima do nível do mar, no departamento de Arequipa, no sul do Chile. Uma espécie de “cultura alcoólica” havia se imposto ali por força do hábito.
Jacinto Yanque Capira, atual morador, que foi prefeito de Tuti entre 1973 e1976, lembra como o alcoolismo estava devastando a população. “As pessoas traziam bebida para o escritório, em garrafas, e tomavam um trago antes de falar qualquer coisa ou de pedir um favor. Bebiam em grupos aqui e ali e depois de beber adormeciam, às vezes sem comer, e não iam trabalhar em suas chácaras.”
Naqueles anos, o álcool era mais do que uma forma de socialização. A deterioração das condições de vida na aldeia era tristemente nítida, dizem os moradores. “Aqui em Tuti, as pessoas gastavam em bebida o pouco dinheiro que ganhavam com a agricultura ou com os animais de criação, em vez de investir na educação de seus filhos”, diz Flora Capira, atual prefeita de Tuti. “Havia também maus-tratos a mulheres e crianças.”
Uma mudança radical. Em 1993, Jesús Mamani, um homem austero, solteiro e trabalhador, com grande apreço e respeito pelos jovens, foi eleito prefeito, e sua equipe de governo decidiu que era preciso reverter aquela situação a todo custo. Para isso, ressuscitaram uma velha regulamentação conhecida como Ley Seca, deliberadamente esquecida, a qual proibia a venda e o consumo de álcool. As autoridades descobriram, porém, que a existência dessa lei não era suficiente, e voltaram-se para os próprios moradores.
“Numa reunião pública, convenceu as pessoas a concordar com a Lei Seca”, explica Don Jacinto. A determinação do prefeito foi o fator decisivo. Doña Flora lembra como ele falava aos habitantes por meio de um alto-falante na praça principal de Tuti, exortando-os a evitar o álcool e dedicar-se ao trabalho e à criação de seus filhos. A tarefa a que ele havia se proposto não era fácil.
“Depois da implantação da Lei Seca, demorou vários anos para que obtivéssemos algum resultado”, lembra Don Jacinto. “As pessoas não pararam de beber do dia para a noite. Isso levou três ou quatro anos. Chegaram a ameaçar Jesús Mamani. As pessoas diziam, ‘Não é o dinheiro do prefeito que estamos gastando’, e por isso não estavam de acordo e continuavam bebendo.”
Don Jacinto diz que o exemplo de um grupo evangélico local, cujos princípios proibiam o consumo de bebidas alcoólicas e enfatizavam o trabalho, acabou convencendo os moradores da cidade a parar de beber. Esse tipo de grupo evangélico não era muito comum na época, mas chamou a atenção para a situação precácia da maioria católica da cidade.
A força de vontade cada vez maior dos habitantes de Tuti e a tenacidade de seu prefeito acabaram tendo êxito em fazer com que a lei fosse obedecida, mesmo com todas as mudanças que isso significava para a vida das pessoas. “Fui testemunha disso”, lembra o ex-prefeito. “Eu também era alcoólatra. Foram dois anos de sofrimento até eu conseguir parar de beber.”
A lei é muito clara. A determinação proíbe estritamente a venda de bebidas alcoólicas dentro da cidade, incluindo a muito popular cerveja, exceto nos feriados, que costumam ser festas religiosas. O governo municipal notificou os revendedores atacadistas de bebidas na capital da província para que não abastecessem os estoques das lojas da aldeia durante os períodos em que o consumo não era permitido. A única resistência à lei veio dos donos de lojas, e alguns deles desobedecem a ela ocasionalmente.
Numa cultura que privilegia o consenso e a persuasão frente à coação e a imposição, é difícil estabelecer penalidades que ultrapassem as sanções morais. No entanto, a pressão popular fez o governo decidir-se recentemente pela instituição de medidas disciplinares para aqueles que desobedecerem à lei.
A essência participativa e consensual da lei não foi ignorada. Nas reuniões municipais, autoridades e moradores demonstram entusiasmo em convencer uns aos outros de que a Lei Seca ainda é necessária.
Antes e depois. Em Tuti, uma das conseqüências mais valiosas da aplicação da Lei Seca foi a redução da violência dentro das famílias. Embora seja difícil encontrar estatísticas para aldeias tão remotas, esse fato fica evidente nos testemunhos, dada a estreita convivência dos moradores do lugar.
Doña Flora, a prefeita, ressalta que as mulheres que estavam sofrendo maus-tratos físicos ou psicológicos não sabiam que podiam denunciar essa situação. “Elas não tinham esse conhecimento”, diz. “Sofriam agressões e tudo ficava por isso mesmo. Mas sempre pareciam tristonhas, sempre falavam de como fulano estava batendo na esposa, e sicrana havia sido posta para fora de casa com os filhos. Eu via muito esse tipo de coisa quando era jovem, mas hoje não se vê mais isso.”
Os anos da Lei Seca coincidiram com uma série de melhoras na vida comunitária. Por exemplo, o padrão tradicional de produção agrícola para consumo próprio foi substituído por um modelo orientado para o mercado que visa geração de receita. Outro avanço foi a introdução de melhores técnicas de criação de animais. Todas essas atividades recebem apoio de ONGs que trabalham nessa região.
Embora possa parecer forçado estabelecer uma relação direta de causalidade entre as melhoras na produção e a Lei Seca, é certo que o avanço ético dos moradores criou condições mais propícias para o aproveitamento da ajuda disponível e para uma convivência em harmônica da comunidade. Há um otimismo admirável e disseminado que reforça a idéia de “antes” e “depois” da Lei Seca.
“Tuti era muito atrasada”, diz Don Jacinto. “Hoje, as pessoas não ficam mais bebendo pelas ruas. Todos vão para o campo, trabalhar a terra e cuidar da criação. Acho que aqui, na província de Caylloma, Tuti está à frente de todas as outras comunidades em termos de progresso econômico, cultural e, acima de tudo, espiritual.” Doña Flora comenta que “as pessoas estão lentamente percebendo que, quando não bebem, não gastam o pouco dinheiro que entra em casa. Vêem que um vizinho tem um gado melhor e todos querem também, todos compram . Ninguém quer ficar para trás. Todo mundo tem alguma coisa e todos trabalham duro.”
Kelyn Gómez, uma funcionária da prefeitura que mora em Tuti há alguns meses, conta que, num teste vocacional aplicado há algumas semanas a um grupo de jovens que estavam concluindo o ensino médio, quase todos eles disseram que queriam permanecer em Tuti e ser agricultores como seus pais. Apenas uma jovem respondeu que já havia muitos agricultores, por isso ela queria ser engenheira. (Enquanto isso, em Lima, uma pesquisa recente mostrou que 86% dos jovens queriam deixar o país.)
Embora o ex-prefeito Jesús Mamani não viva mais em Tuti, a iniciativa que ele patrocinou está dando frutos. Aldeias vizinhas, como Callalli, anunciaram suas próprias “leis secas”, numa tentativa de repetir o sucesso de Tuti. Em Tuti, a lei está agora tão internalizada entre os moradores que, na mais recente comemoração do aniversário da cidade, eles dissuadiram o prefeito de fazer um brinde com champanhe. Preferiram seguir o costume inca e fazer um brinde com grandes jarros de cerâmica cheios de chicha, uma bebida tradicional da região.