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Violência doméstica aos olhos do público

Podem os meios de comunicação mudar o comportamento individual que produz a violência doméstica?

Sozinhos, provavelmente não. Mas ao relatar com sensibilidade essa triste realidade a mídia presta uma grande contribuição à sociedade, aumentando o nível de conscientização do público e ajudando a construir o consenso que permitirá dar maior proteção às mulheres e crianças vítimas de abuso.

Foi essa a conclusão de muitos dos participantes após a sessão de um dia inteiro dedicado ao papel da mídia na conferência "Violência doméstica na América Latina e no Caribe: custos, programas e políticas", realizada em outubro na sede do BID em Washington, D.C.

O primeiro dia da conferência enfocou a extensão, as causas e os custos da violência doméstica na região, bem como as questões relacionadas com o cumprimento de leis, a legislação, a prevenção e o tratamento das vítimas e dos perpetradores. Mas, ao reservar todo o segundo dia à análise das relações entre a mídia e a violência doméstica, os organizadores da conferência reconheceram que a televisão, o rádio e a imprensa escrita constituem muitas vezes o elemento crítico em qualquer esforço sério para enfrentar esse problema devastador.

"Existe uma conspiração histórica de silêncio ", afirmou o Presidente do BID Enrique V. Iglesias na conferência. "Dessa forma, é de extrema importância falar publicamente sobre a questão, para trazer o assunto à luz e sacudir as nossas sociedades."

Jornalistas, roteiristas de televisão, radialistas e especialistas em educação na área da saúde ofereceram na conferência exemplos vívidos de como os meios de comunicação podem fazer isso.

Rossana Fuentes, jornalista do Diario Reforma do México, e Maria Carmen Barbosa, roteirista da Rede Globo de Televisão do Brasil, descreveram como as novelas se tornaram um dos veículos mais poderosos para a colocação de questões relativas à mulher na agenda pública da América Latina. Segundo Maria Carmen, os roteiros de novelas, que antes eram da autoria quase que exclusiva de homens, hoje são com freqüência escritos por mulheres. Nas novelas brasileiras, as personagens femininas muitas vezes ganham a preferência nacional e são numerosos os episódios dedicados a questões como a violência doméstica.

"Nossa capacidade de abrir caminhos para o diálogo é muito poderosa", disse Jorge Valverde, apresentador de "En la mira", programa televisivo de entrevistas da Costa Rica. Nos últimos oito anos, Valverde dedicou 32 episódios de seu programa à violência doméstica, normalmente convidando as vítimas para contar a sua história diante das câmaras. "Para muitas mulheres, vir a um estúdio de televisão é a única maneira de poder expor com segurança os seus violentadores", disse Valverde, segundo o qual o temor da reprovação pública é o agente dissuasivo mais eficaz contra a retaliação por parte dos denunciados.

Outros participantes da conferência descreveram batalhas legislativas e judiciárias cujo desfecho foi determinado sobretudo pela cobertura da mídia. Beatriz Moreno, congressista do Peru e presidente da Comissão de Mulheres do Congresso de seu país, descreveu como em 1996 a cobertura nacional e internacional dos meios de comunicação contribuiu para a revogação de leis em vigor desde 1924 que protegiam os estupradores de acusação judicial.

Dorrit Harazim, jornalista da revista semanal brasileira Veja, contou a história de uma mulher de 51 anos que foi estuprada ao voltar do trabalho para casa. Harazim a entrevistou e obteve sua permissão para que Veja publicasse um relato na primeira pessoa do estupro e de seus esforços para conseguir abortar com segurança quando descobriu que estava grávida. A questão chegou às bancas de jornais no momento exato em que o Congresso brasileiro se preparava para votar uma emenda de lei que estenderia as proibições existentes sobre o aborto à gravidez resultante do estupro. Com uma circulação de 1,2 milhão de exemplares, Veja é a publicação mais lida da América Latina. O Congresso votou contra a emenda e diversos congressistas citaram o artigo de Veja com um fator-chave para a sua decisão.

A questão de como as ONGs e outros grupos de interesse podem usar a mídia para ajudar a impedir o abuso doméstico provocou debates apaixonados na conferência. Mónica Bottero, editora do semanário uruguaio Búsqueda, observou que as ONGs muitas vezes não conseguem entender os critérios que levam um veículo a aplicar os seus escassos recursos editoriais em uma determinada história. Embora se declarasse pessoalmente simpática a qualquer história relativa a abusos domésticos, Bottero lembrou que "a mídia é um produto e nós temos de garantir que venda". Isso significa que a história deve ter um ângulo único, depoimentos pessoais intensos ou dados estatísticos que capturem o interesse de leitores entediados. Por isso, Bottero instou com as ONGs a que dêem às informações sobre abusos domésticos uma "embalagem" chamativa o suficiente para exercer apelo sobre os editores.

Mas outros participantes da conferência mostraram-se críticos com relação às tentativas de dramatizar as histórias de abuso doméstico. Silvia Rojas, repórter do diário peruano La República, confessou que a sua abordagem à cobertura da violência doméstica mudou de forma permanente alguns anos atrás quando ela contatou a responsável por um centro para mulheres espancadas e pediu para falar com alguém que tivesse passado recentemente por esse vexame. "Ela me respondeu que se recusava a me ajudar a encontrar 'vítimas frescas' para tornar a minha história mais gráfica", lembrou Rojas. O incidente a convenceu de que é difícil cobrir a violência doméstica sem sensacionalismos e sem humilhar as vítimas.

Diversos representantes de ONGs concordaram com Rojas e exortaram os meios de comunicação a deixar de lado as considerações comerciais e a dar cobertura à violência respeitando a privacidade e a dignidade das vítimas.

Existem exemplos desse tipo de cobertura, ainda que seus custos sejam consideráveis. Jim Landers, editor do Dallas Morning News do Texas, Estados Unidos, descreveu como 30 jornalistas do editorial e da produção de seu jornal trabalharam durante quase um ano em uma série de 14 artigos sobre o problema da violência doméstica em 12 países. A série, que ganhou o Pulitzer (o mais alto prêmio concedido à imprensa escrita nos Estados Unidos), baseou-se sobretudo nas informações fornecidas por ONGs do mundo todo. "Foi um desses projetos que acontecem uma vez a cada dez anos", disse Landers, "e mudou a forma como eu vejo o mundo."

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