Pular para o conteúdo principal

A vida na berlinda

Beatriz Boza sabe que tem inimigos. Como presidente da Indecopi, a agência peruana antitruste e de proteção ao consumidor, está sempre sob os olhares vigilantes das empresas denunciadas pelo seu pessoal."Toda vez que expomos um esquema de fixação de preço de um grupo de companhias ou uma campanha publicitária que fere os princípios da ética ou da transparência, somos alvo de reclamações", diz ela. Há também os casos mais delicados envolvendo funcionários públicos. Como o do município de uma região litorânea que estava cobrando ilegalmente uma taxa das pessoas pelo acesso às praias públicas. Ou o caso que envolvia restrições impróprias à exportação impostas pelo Ministério da Agricultura.

Boza afirma que o seu órgão tem imposto sanções com êxito a práticas anticompetitivas de entidades governamentais em numerosas ocasiões, sem nunca ter sofrido represálias. A razão, ela admite de pronto, está no fato de que "somos independentes. Não podemos ser cooptados por nenhum grupo de interesse".

Apenas cinco anos depois de criada com a finalidade de consolidar funções normativas dispersas pelos numerosos ministérios, a Indecopi se transformou, graças à reputação adquirida por sua imparcialidade, em um órgão de recurso de grande popularidade. De acordo com Boza, empresas e consumidores apresentam 40.000 queixas à agência todos os anos. Essas reclamações vão do trivial -- o consumidor que reclama da qualidade dos sapatos de um determinado fabricante porque se desmancharam depois de molhados -- ao politicamente explosivo, como quando queixas alertaram o órgão para o esforço das companhias locais de ônibus de aumentar os preços das passagens com a aprovação tácita do Ministério dos Transportes. Mas o êxito da solução em cada caso depende do grau em que os funcionários da Indecopi são vistos como imparciais e imunes a pressões políticas e econômicas.

Sob esse aspecto, a missão de Boza assemelha-se à de centenas de outros funcionários de países latino-americanos, que estão dando aos reguladores independentes poderes cada vez maiores para intermediar as demandas conflitantes de companhias, consumidores e governo. Qualquer que seja a sua área de atuação -- políticas de concorrência, proteção do meio ambiente, padrões de saúde ou atividades das empresas públicas, dos bancos ou do mercado mobiliário -- as agências reguladoras são alvo de intenso lobbying da parte de grupos de interesse que têm a ganhar ou perder com as interpretações particulares da lei.

Os supervisores do setor bancário, por exemplo, são submetidos a fogo cerrado por parte das companhias que desejam acesso mais fácil ao crédito dos bancos nacionais. Mas os investidores estrangeiros e os bancos multilaterais de desenvolvimento tipicamente esperam que os mesmos supervisores ponham em prática controles duros para impedir que os bancos ultrapassem os limites de prudência e façam empréstimos irrecuperáveis. Os reguladores do meio ambiente devem pesar os interesses das companhias madeireiras, que desejam permissão para a extração de material nas florestas nativas, contra os dos grupos ambientais que lutam para expandir as áreas protegidas. Os reguladores do setor petrolífero são colhidos no meio da eterna batalha entre os grupos de consumo que pretendem o melhor preço possível para o gás e as companhias de energia que defendem o aumento das tarifas para melhorar os seus lucros e financiar a expansão dos negócios.

RECLAMAÇÕES INDICAM EXCELÊNCIA.

Quando se percebe que os órgãos de regulação favorecem um grupo em detrimento de outro, a eqüat;idade do próprio sistema de mercado é muitas vezes colocada em xeque, diante das conclusões dos cidadãos de que as regras do jogo econômico podem estar sendo distorcidas para favorecer a quem dispõe de maior cacife político e financeiro. Por causa disso, os reguladores muitas vezes consideram as reclamações contra eles vindas de todos os quadrantes como uma espécie de selo de qualidade -- a prova de que estão tratando de forma equilibrada as preocupações de todas as partes. "Quando todos estão infelizes e todos protestam contra as minhas decisões, então me parece que estou fazendo um bom trabalho", diz Claude Besse, superintendente geral do Sistema Geral de Regulação Setorial (SIRESE) da Bolívia.

Por mais diretos que esses princípios possam parecer, os órgãos reguladores verdadeiramente independentes são raros na maioria dos países latino-americanos, sobretudo naqueles em que o Executivo tem amplos poderes discricionários sobre a política econômica. Os sistemas paternalistas de política, que enfatizam a lealdade partidária e o clientelismo, também podem trabalhar contra a regulação independente. Nesses sistemas, os governos recém-eleitos tendem a entregar as tarefas cruciais da função reguladora a amigos e partidários para "premiá-los" por sua lealdade.

Embora façam pouca diferença nas economias dominadas pelos Estados, essas deficiências se tornam problemas gritantes em países em que se permite que as forças de mercado determinem os preços e a alocação dos recursos. Nas economias recém-liberalizadas da América Latina, legisladores e grupos de cidadãos estão, como conseqüat;ência, envolvidos em discussões acaloradas sobre como garantir a independência dos reguladores e de outros funcionários -- como juízes, por exemplo -- que cada vez mais são convocados para garantir a transparência e a eqüat;idade do mercado. "Até recentemente, a preocupação em muitos países era atrair o investimento estrangeiro", diz William Savedoff, economista do BID que estuda a regulação no setor da água. "Hoje, a atenção está se voltando para como criar entidades reguladoras autônomas dignas de crédito."

AVALIAÇÃO E CORREÇÃO.

Apesar das diferentes tradições jurídicas e de regulação dos países da região, podem-se utilizar vários critérios para avaliar a independência e a credibilidade das agências reguladoras em muitos setores (ver abaixo).

O fator mais básico é a qualidade da lei que estabelece a autoridade reguladora e define seus poderes e suas responsabilidades. Se a lei é elaborada às pressas ou promulgada por decreto presidencial, a entidade reguladora resultante tende a ter menos credibilidade do que quando a lei resulta do processo de discussão e compromisso no Legislativo. Se a lei não traça claramente os limites entre a jurisdição da agência e a dos titulares dos diversos ministérios e do sistema judicial, as decisões dos reguladores provavelmente tenderão a ser ignoradas.

A lei deverá também definir claramente como são nomeados os reguladores, que qualificações deverão ter, qual a extensão do seu mandato e como suas atividades serão financiadas. De acordo com Besse, da Bolívia, os últimos fatores são cruciais. "Nossa independência política provém do fato de que o presidente deve escolher cada um dos reguladores entre candidatos aprovados por dois terços do Senado", diz ele. "Os reguladores cumprem mandatos de cinco ou sete anos, em períodos que não coincidem com eleições, e não podem ser removidos, a não ser que falhem no cumprimento de suas obrigações."

A autonomia financeira também é crítica para proteger os reguladores das pressões políticas que danificariam sua credibilidade e destruiriam sua eficácia. O orçamento operacional da SIRESE, por exemplo, é coberto por um pequeno imposto sobre a receita das companhias cujas atividades ela fiscaliza. Cerca de 70% das despesas operacionais da Indecopi são custeadas pelas multas pagas por companhias punidas e pelas tarifas cobradas por solicitações de patentes e marcas comerciais. Essas disposições de "autofinanciamento" fazem com que os orçamentos operacionais dos órgãos reguladores não dependam de apropriações anuais do Congresso, suscetíveis de jogos políticos.

Mas para serem plenamente efetivos, os órgãos reguladores devem estar sujeitos a regras que limitem os seus poderes. Além das restrições à jurisdição dos reguladores que constam dos termos da lei, quase todos os países permitem o recurso contra as suas decisões. Tipicamente, os pedidos de revisão de processo que não se resolvem no âmbito da própria agência reguladora são transferidos para o sistema judicial, onde os tribunais emitem sentenças independentes sobre as questões.

A maioria dos países também impõe restrições às atividades profissionais dos funcionários que atuam na área da fiscalização a fim de impedir conflitos de interesses. Não se permite, por exemplo, que os supervisores do sistema bancário exerçam atividades de consultoria para instituições financeiras, nem que sejam tentados por ofertas de emprego da parte de bancos para se beneficiarem de seus contatos e de sua perícia. Para impedir esses abusos, muitos países restringem o trabalho que os reguladores podem exercer durante e imediatamente depois do seu período de serviço nas agências. Outras regras limitam o número de anos consecutivos que um funcionário pode permanecer no mesmo posto nos órgãos reguladores.

Em última instância, porém, a competência e a imparcialidade dos funcionários na área da regulação dependem da vigilância e do interesse da sociedade. Em verdadeiras economias de mercado essa vigilância é tudo menos garantida. "Quando se lida com três protagonistas diferentes com agendas distintas, não é mais possível a um presidente nomear um amigo com quarto ano primário para dirigir uma agência de regulação", diz Savedoff, do BID. "Alguém acaba reclamando."

* David Mangurian contribuiu para este artigo.

Jump back to top