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Seguro contra o próximo Mitch

Os moradores de La Masica não são mais ricos, mais inteligentes nem mais afortunados que os seus vizinhos de outros municípios de Atlantida, departamento da costa norte caribenha de Honduras, castigado pelo furacão Mitch em outubro. Mas, ao contrário de milhões de outros hondurenhos, quando o desastre lhes bateu à porta eles estavam preparados.

La Masica, município rural com 24.336 habitantes, não sofreu baixas humanas naquela que acabou sendo a catástrofe natural mais devastadora da América Central nos dois últimos séculos. Ele se destacou como uma exceção marcante num país em que morreram mais de 5.600 pessoas devido às pesadas inundações e aos deslizamentos de terra e em que cerca de outras 8.000 pessoas continuam nas listas de desaparecidos.

Como os moradores de La Masica conseguiram esse feito? Por certo eles não receberam nenhum tratamento especial do furacão, cuja fúria destruiu boa parte da infra-estrutura social e de produção da área. O que eles tinham era preparação. Cerca de seis meses antes da passagem da tormenta, a agência centro-americana de prevenção de desastre regional, a Cepredenac, lançou naquele município um programa piloto, com apoio da agência de ajuda GTZ da Alemanha. O programa faz parte de um trabalho regional para envolver as comunidades locais na prevenção e mitigação de desastres naturais.

Quando Mitch começou a despejar sobre o seu território, em uma semana, o equivalente a um ano de chuva, os moradores de La Masica já sabiam o que fazer. As pessoas nas áreas vulneráveis foram prontamente resgatadas, os cidadãos se mobilizaram em missões de resgate, distribuiu-se alimento e tiveram início os reparos nas escolas danificadas.

Algo mais torna este município diferente: desde o primeiro aviso e do início das atividades de salvamento, mulheres e homens trabalharam juntos em pé de igualdade. Numa apresentação no seminário realizado na reunião de junho do Grupo Consultivo para a Reconstrução e Transformação da América Central em Estocolmo, Mayra Buvini , chefe da Divisão de Desenvolvimento Social do BID, descreveu como as mulheres de La Masica assumiram o controle do sistema de alerta antecipado depois que os homens deixaram seus postos desguarnecidos. Em reconhecimento do seu papel fundamental, o prefeito de La Masica afixou um novo cartaz em seu gabinete, no qual se lê: "Tudo é melhor com a cooperação das mulheres".

Os participantes do seminário descreveram outros exemplos bem-sucedidos, como o caso de sítios e fazendas em que se praticava a agrossilvicultura, com terraços e outras técnicas de bom manejo, que relataram muito menos deslizamentos e menos erosão do solo com as chuvas do Mitch do que os agricultores vizinhos.

Infelizmente, porém, estas foram exceções em uma região constantemente ameaçada por desastres naturais e devastada pelo subdesenvolvimento. Embora calamidades como furacões, terremotos, inundações e deslizamentos de terra sejam inevitáveis, os seus efeitos podem ser ampliados ou mitigados pelo homem. Na América Central, as pressões demográficas, a urbanização caótica, a expansão das fronteiras agrícolas, o desmatamento desregrado e a gestão precária das bacias hidrográficas se combinam para tornar os desastres ainda mais destrutivos.

"O furacão Mitch mostrou que os desastres ‘naturais' muitas vezes não são puramente naturais, mas são influenciados por fatores criados pelo homem", disse o Secretário-Geral das Nações Unidas Kofi Annan, em seu discurso inaugural na reunião de Estocolmo. "Na verdade, muito do que foi feito em nome do progresso -- como limpeza de terreno para a implantação de fazendas e a construção de casas -- exacerbou os efeitos da tormenta. E muito do que não foi feito nas agendas sociais dos países causou tantas vulnerabilidades que, quando a natureza golpeou, inúmeras pessoas ficaram sem casa, sem emprego, sem escola e ainda mais desesperançadas do que antes."

Uma questão de localização.
A maioria dos centro-americanos vive em áreas sujeitas a desastres. Nas cidades, os pobres tendem a construir favelas em locais marginais de alto risco, como encostas íngremes ou várzeas inundáveis. Nas zonas rurais, a demanda de terras para agricultura e criação de gado teve como resultado uma das taxas mais aceleradas de desmatamento do mundo. Os países da América Central ainda não encontraram uma maneira de gerir em conjunto as bacias hidrográficas dos rios que cruzam suas fronteiras nacionais. Nas costas, as proteções naturais contra furacões e tsunamis, como manguezais, pântanos e recifes de coral, estão se deteriorando devido à intensificação de operações de maricultura, ao desenvolvimento não controlado do turismo e à contaminação provocada por esgotos não tratados e pelo despejo de pesticidas e outros produtos químicos agrícolas.

Boa parte dos danos causados pelo furacão Mitch pode ser atribuída às más práticas de uso da terra, ao assentamento humano descontrolado e à falta de preparação adequada para enfrentar os desastres. De acordo com a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina e o Caribe, cerca de 75% das perdas de bens e serviços resultaram de problemas como a construção de casas muito perto de rios ou a abertura de estradas e o levantamento de pontes em locais vulneráveis.

Para piorar ainda mais as coisas, o furacão de outubro preparou o terreno para desastres potencialmente ainda maiores na estação de chuvas deste ano. Os principais rios estão ainda assoreados, o que diminui a sua capacidade de absorver elevações repentinas no nível das águas. Muitas encostas de morros estão despojadas de vegetação, o que as torna mais frágeis e sujeitas a deslizamentos de terra.

"Nestas condições, um novo furacão, ou até mesmo uma tormenta tropical, pode acabar se transformando em um desastre de enormes proporções", afirma Mauricio Castro Salazar, diretor executivo da Comissão Centro-Americana para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, com sede em El Salvador. "As pessoas não estariam prontas para isso, simplesmente porque não houve tempo suficiente para a preparação." E acrescentou que as pessoas deslocadas já começaram a retornar às áreas de alto risco em que viviam antes do Mitch.

Uma das tristes ironias da tragédia centro-americana é que, embora essas catástrofes sejam em grande parte conseqüência da pobreza e do subdesenvolvimento, os planos de prevenção de desastre não precisam ser caros para ser eficazes. Belize movimentou mais de 30.000 pessoas da costa para o interior antes da chegada de Mitch ao istmo. A Costa Rica, embora não estivesse na rota do furacão, sofreu apenas quatro mortes provocadas por inundações-relâmpago devido às chuvas torrenciais, na maioria dos casos porque as pessoas se recusaram a atender às instruções de evacuação. Até mesmo Cuba, com tantos problemas econômicos, consegue evacuar as pessoas que estão na rota do perigo sempre que um furacão se aproxima da ilha.

A prevenção e mitigação de desastres raramente são computadas no processo de desenvolvimento da América Central, na opinião de Luis Rolando Durán, secretário executivo da Cepredenac, o órgão regional de prevenção de desastres.

"São normalmente consideradas como uma atividade temporária", disse Durán aos participantes do seminário. "Nos países mais atingidos, as alocações orçamentárias para os órgãos de gestão em emergências mal cobrem a folha de pagamento de pessoal."

Nas sessões plenárias da reunião de Estocolmo, os líderes centro-americanos declararam o seu empenho em mudar essa situação. Os países apresentaram planos para fortalecer os seus programas nacionais de prevenção de desastres e incluíram dispositivos de mitigação em diversos projetos em setores como infra-estrutura, agropecuária, silvicultura e turismo.

Honduras, por exemplo, dedicou um capítulo inteiro de seu plano de reconstrução à gestão dos recursos naturais e dos riscos. Embora argumentando que nenhum país poderia ter dominado uma catástrofe das proporções do Mitch, o documento hondurenho também reconhece que a degradação ambiental provocada pelo homem, as instituições ineficientes e o planejamento insatisfatório pioraram as coisas. Para solucionar esses problemas, propõe um conjunto de programas desenhados para identificar as áreas de maior risco, monitorar bacias hidrográficas, reorganizar o sistema nacional de gestão de emergências e fortalecer os comitês municipais de emergência.

Dirigindo-se à conferência dos doadores, o presidente hondurenho Carlos Roberto Flores declarou: "Desejo ressaltar o seguinte: comprometemo-nos a não reconstruir do mesmo modo nem com os mesmos níveis de vulnerabilidade, porque dessa forma estaríamos apenas alcançando um alívio passageiro para os nossos problemas, mantendo ao mesmo tempo as condições que permitirão a recorrência e gravidade dos desastres naturais".

Juntamente com essas expressões de vontade política, outros oradores ressaltaram o fato de que estão disponíveis ferramentas de política para gestão ambiental e proteção dos grupos mais vulneráveis aos desastres naturais e aos provocados pelo homem. A reunião também apresentou algumas tendências animadoras, como a disposição dos governos centro-americanos de fazer da sociedade civil uma parceira ativa na reconstrução. Destacou também a redução da vulnerabilidade como um componente indispensável dos esforços para tornar esta região um local melhor e mais seguro para se viver.

Mesmo assim, alguns especialistas se debruçaram sobre os mapas meteorológicos e vislumbraram problemas pela frente. Embora a temporada de chuvas da América Central já tivesse começado quando teve lugar a conferência de Estocolmo, Durán da Cepredenac afirmou não ter encontrado indícios de que estivessem sendo incluídas nos planos de reconstrução nacional medidas de mitigação de risco. Ao mesmo tempo, reconheceu que os governos estão tolhidos devido à falta de dados confiáveis nos quais basear suas decisões sobre prevenção de desastres.

"Isto é uma limitação, porque é necessário comparar a urgência da reconstrução da infra-estrutura com as informações disponíveis, para torná-la mais segura. Infelizmente, este é um fato inevitável", concluiu.

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