Para ir de carro de um lado de Quito, capital do Equador, até o outro, é preciso passar pelo século 17. Ou pelo menos assim parece aos que pela primeira vez tentam atravessar as ruelas estreitas do distrito histórico do centro de Quito.
Confinada a um vale longo e estreito a 2.700 metros acima do nível do mar, Quito vista do alto parece uma gravata-borboleta.O ponto mais estreito do vale — o nó da gravata — é onde se situa uma antiga cidade inca sobre a qual os conquistadores espanhóis construíram um dos mais importantes centros do período colonial. O primeiro hospital do hemisfério ocidental foi fundado aí em 1565 e uma das primeiras universidades em 1603. Existem 15 igrejas, conventos e monastérios com ornamentos elaborados na área de 72 quarteirões do distrito histórico, além de dezenas de outras construções preciosas. É tão rico o complexo de bens imóveis do distrito que em 1978 ele tornou-se a primeira área urbana na América Latina a ser considerada Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, que a qualificou de “o centro histórico mais bem-preservado e menos adulterado da América Latina”.
Mas a localização central do distrito mostrou ser quase uma maldição. À medida que o vale de ambos os lados do centro de Quito se desenvolveu durante este século, o centro antigo se transformou num engarrafamento de trânsito constante. Com o tempo, cerca de 300.000 pessoas e 85% dos ônibus da cidade lutavam todos os dias para atravessar o centro. Estacionar se tornou quase impossível, o que forçava os automóveis a ficar dando voltas em busca de uma vaga. As ruas estreitas e sinuosas do distrito não comportavam o tráfego, que freqüentemente se arrastava em meio ao barulho das buzinas e aos gases dos escapamentos.
No começo dos anos 80, os esforços de preservação do distrito histórico de Quito estavam praticamente suspensos. Os planos bem-intencionados para proteger o distrito datavam dos anos 40, quando se tornou claro que as coisas estavam mudando para pior. As grandes mansões com pátios internos que antes pertenciam à classe abastada de Quito estavam rapidamente sendo abandonadas por casas modernas nos subúrbios. Muitas das casas antigas foram subdivididas em às vezes até 15 moradias minúsculas ocupadas por famílias pobres. Lojas e empresas de serviços gradualmente se transferiram também para os novos bairros, sendo substituídos por cerca de 5.000 camelôs que entupiam as calçadas estreitas do distrito e três mercados ao ar livre que produziam toneladas de lixo.
Preservação por decreto. No princípio, o governo tentou interromper o declínio mediante uma série de leis para proteger prédios e monumentos específicos e restringir a forma em que os proprietários de imóveis históricos podiam utilizar suas propriedades. Em muitos casos, as leis tiveram o efeito oposto ao desejado. Alguns proprietários conscientemente negligenciaram seus imóveis para apressar o momento em que a única alternativa seria demoli-los e construir novas estruturas. Outros subdividiram-nos em unidades de aluguel pequenas e inadequadas. Nesse período, praticamente não houve nenhum trabalho de restauração nem foram feitos investimentos significativos.
Nos anos 80, funcionários governamentais federais e municipais concordaram em que era necessária uma abordagem radicalmente diferente. Ao estudar a experiência de distritos históricos em outros países, o governo decidiu desenvolver um plano abrangente que ia além da mera restauração e visava a revitalização da economia do distrito buscando explicitamente a participação do setor privado. O objetivo do plano, desenvolvido com a assistência técnica do BID, era ambicioso. Visava reavaliar a infra-estrutura de transporte do distrito, racionalizar o fluxo de tráfego, eliminar o lixo e as habitações abaixo do padrão, manter uma população variada de residentes e criar parcerias de investimento com construtoras comerciais e residenciais.
“O envolvimento do setor privado e da sociedade civil era o que estava faltando nos projetos anteriores”, diz Eduardo Rojas, o chefe da equipe do BID encarregada do projeto de restauração de Quito. Ao contrário dos esforços anteriores, que emanavam do governo, o novo programa foi concebido para operar junto com a comunidade. A fim de assegurar a eficiência, acessibilidade e transparência, o governo delegou a gestão do programa a uma nova empresa de desenvolvimento autônoma e sem fins lucrativos, a Empresa del Centro Histórico de Quito (ECH). Em 1994, o BID aprovou um empréstimo de US$41 milhões para ajudar a financiar os primeiros seis anos de operações da ECH.
Embora tivesse recebido recursos e propriedades adquiridas anteriormente pelo governo municipal de Quito, sob vários aspectos a ECH opera como uma empresa privada. Está autorizada a usar procedimentos simplificados de contratação e aquisição e pode desenvolver empreendimentos comerciais no centro histórico. No entanto, no futuro terá que vender essas empresas a fim de recuperar custos e voltar a investir nos projetos de reabilitação.
A missão essencial da ECH é atrair investidores privados assumindo os riscos do investimento inicial num projeto de desenvolvimento. Um de seus primeiros empreendimentos, por exemplo, foi adquirir o Hotel Majestic, um edifício imponente na Plaza de la Independencia, no centro, que tinha sido subdividido em inúmeros escritórios pequenos e unidades de uso múltiplo. A ECH está planejando restaurar a fachada do edifício e renovar seu interior depois que for selecionada uma firma privada para operar e equipar ali um apart-hotel com 30 quartos, juntamente com outro projeto de hotel em andamento no elegante Patio Andaluz.
No projeto do Centro Comercial La Manzana, a ECH estripou meio quarteirão de edifícios históricos, mantendo suas fachadas e certas características arquitetônicas distintas, construindo no local espaços modernos para a instalação de lojas com o objetivo de montar um centro de compras. Um espaço menor, conhecido como Pasaje Baca, foi resedenhado para abrigar um complexo de restaurantes e lojas elegantes. O interesse da parte de investidores em potencial tem sido intens antes mesmo que o trabalho estivesse terminado, a ECH já havia recebido mais de 4.000 pedidos para alugar os 110 espaços arrendáveis nesses dois conjuntos. Está também prevista a construção de um complexo com quatro salas de cinema em dois edifícios históricos restaurados.
Nem todos os projetos da ECH têm uma dimensão comercial. Dentre as suas mais importantes realizações está o Museo de la Ciudad, construído sobre o que eram até recentemente as ruínas do Hospital San Juan de Dios, de 400 anos. O museu recria a vida na Quito colonial através de intricados dioramas que focalizam artes e tradições específicas. Outros espaços estão reservados para mostras de arte contemporânea do Equador.
A ECH não quer transformar o distrito histórico num centro cultural e de compras para a classe alta. Ao contrário, o objetivo é assegurar que uma mistura representativa de gente das classes baixa, média e alta queira viver e trabalhar no distrito histórico. Nesse sentido, a ECH foi pioneira de um programa inovador para reabilitar velhos edifícios de apartamentos hoje ocupados por diversas famílias.
Nos últimos cinco anos a ECH também pagou a empreiteiros privados para reconstruir as calçadas deterioradas em 72 quarteirões ao redor da praça principal e construir 2.000 novas vagas nos estacionamentos fechados. Outros projetos envolvem a modernização e sincronização dos sinais de trânsito, a colocação de sinalização nova e a melhoria do padrão de circulação de trânsito em função de um recém-instalado sistema de trolebus. A ECH está também coordenando a construção de novos complexos comerciais que acomodarão os milhares de vendedores de rua que ainda trabalham nas ruas centrais da cidade.
Pedindo para que voltem. Apesar dessas realizações notáveis, Paulina Burbano de Lara, a jovem diretora da ECH, diz que não tem sido fácil atrair investidores privados. “Os grandes investidores querem um fluxo de gente, de turistas, que gastem muito dinheiro no centro”, ela explica. “Muitos desses investidores tinham seus escritórios aqui há 10 ou 15 anos, mas mudaram-se todos para o Norte. Não tem sido fácil convencê-los que o centro tem novamente um potencial econômico.”
O processo ficou ainda mais complicado com a crise financeira que atingiu o Equador depois da desvalorização da moeda brasileira em janeiro. A moeda equatoriana perdeu 40% de seu valor e o governo teve que adotar mediads radicais para proteger o frágil sistema bancário do país. “Esta não é a melhor hora para interessar o setor privado em novos investimentos”, diz Gabriel Montalvo, o especialista setorial do BID em Quito que está supervisando o projeto. “Em tempos de recessão, o setor privado não gosta de arriscar capital.”
Mas Paulina de Lara é otimista e ressalva que as empresas e os moradores agora compreendem que a ECH está disposta a trabalhar com eles de um modo que nenhum dos programas de reabilitação anteriores conseguiu. O conceito de parcerias comerciais público-privadas, praticamente desconhecido quando a ECH abriu suas portas, está agora provado e começando a atrair a atenção de investidores sérios.
“Estamos criando uma base sólida”, diz Paulina de Lara. “Talvez precisemos de seis a oito anos. Mas não tenho dúvidas sobre o futuro do centro histórico e o envolvimento do setor privado.”