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Os direitos do acionista

Foi chamada de "a transação do século". Os altos executivos da Enersis, gigantesca holding do setor elétrico chileno, negociaram a venda de boa parte de suas ações a uma empresa espanhola. A expectativa era de que a transação de US$1,5 bilhão enriquecesse os acionistas e preparasse o cenário para uma nova expansão.

Mas surgiu um problema. Com a divulgação gradual dos termos da negociação em setembro último, a comissão dos acionistas minoritários da Enersis chegou à conclusão de que um número reduzido de altos executivos possuidores de uma classe preferencial de ações da companhia receberiam centenas de vezes mais por ação do que os detentores das ações ordinárias.

A comissão dos acionistas ofendidos processou os administradores, ao mesmo tempo em que a Superintendência de Valores e Seguro (SVS) anunciou que estava investigando inúmeras irregularidades ocorridas na negociação.

Embora o assunto esteja longe de ser resolvido, o presidente e o gerente geral da Enersis já renunciaram a seus cargos sob pressão da diretoria da empresa. A SVS multou em milhões de dólares os executivos que intermediaram a transação, apontando conflitos de interesses que violam a legislação chilena sobre valores mobiliários. E a fusão com a empresa espanhola está sendo renegociada, desta feita sob a atenta fiscalização dos acionistas minoritários e dos gerentes de diversos fundos privados de pensão com investimentos pesados na Enersis.

Falando em uma conferência do BID sobre mercados de valores mobiliários (ver página 5), o Subsecretário de Finanças do Chile Manuel Marfán chamou a situação da Enersis de "caso teste", que provavelmente reforçará a supremacia do direito e colocará em evidência a importância das regulamentações elaboradas para proteger os direitos dos acionistas.

DIREITOS PARA OS INVESTIDORES?

No passado, as palavras "acionista" e "direitos" raramente apareciam juntas na América Latina, onde a propriedade de ações era na prática um privilégio das elites. Na última década, porém, as políticas de privatização transformaram milhões de latinos-americanos da classe média, e até mesmo da classe trabalhadora, em acionistas. A venda de indústrias estatais normalmente inclui cláusulas que concedem ações aos empregados. E os esquemas de privatização da previdência social em alguns países latinos vinculam a renda da aposentadoria dos trabalhadores ao desempenho de fundos privados de pensão que investem em valores mobiliários.

Como resultado, trabalhadores que nunca dispensaram muita atenção à administração corporativa passaram a se deter na seção de negócios quando folheiam o jornal da manhã. Eles querem saber qual o volume de informações que podem esperar dos gerentes de seus fundos de pensões e dos diretores das companhias em que possuem interesses. E, como o caso da Enersis ilustra, eles estão se organizando e tomam medidas corretivas quando julgam que as companhias estão deixando de agir no seu melhor interesse.

Isso representa uma surpreendente mudança na América Latina, onde a maioria das grandes companhias ainda é administrada a portas fechadas por famílias e sócios com interesses comuns. As empresas tendem a ser seletivas no material que divulgam, o que acarreta dificuldades para os investidores determinarem o valor de seus ativos, quanto elas devem e qual o montante da sua receita - em resumo, se elas representam ou não um bom investimento.

No entanto, a companhia que decide levantar capital com a colocação de ações ou obrigações no mercado se expõe automaticamente a um exame mais cuidadoso. Como conseqüência, por toda a América Latina os investidores estão demonstrando um intenso interesse pelas leis e regulamentações cujo objetivo é garantir que as companhias forneçam informações oportunas e precisas a seus acionistas.

Além de possibilitar que os pequenos investidores avaliem as companhias, essas leis impedem os seus proprietários e executivos (juntamente com os acionistas "majoritários", que possuem grandes blocos de ações) de usar informações privilegiadas de "iniciados" para fechar transações que os favorecem em detrimento dos acionistas minoritários. Como os escândalos das transações baseadas em informações privilegiadas de Wall Street bem demonstraram na década de 80, até mesmo os mercados mobiliários mais sofisticados do mundo sucumbem à tentação desses abusos.

De acordo com Jesse Wright, especialista do BID em desenvolvimento de mercados mobiliários, praticamente todas as principais bolsas de valores da América Latina adotaram leis e regulamentos que tratam dessas questões. Quase todas elas optaram por uma abordagem de regulamentação em dois níveis, semelhante à usada nos Estados Unidos. Uma entidade regulamentadora independente, conhecida tipicamente como Comissão Nacional de Valores, zela pelo cumprimento das leis que regem os valores mobiliários e as bolsas, ao mesmo tempo em que delega o trabalho de fiscalização do dia-a-dia a organizações membros auto-reguladas que administram diretamente as diferentes bolsas de valores. Essas entidades fiscalizam o cumprimento de um grande número de normas, que vão desde a verificação da exatidão das informações contidas nos relatórios fornecidos pelas companhias até a garantia de que os corretores não estão induzindo a erro os seus clientes.

PROTEÇíO DO PEQUENO ACIONISTA.

Estariam as autoridades regulamentadoras de valores mobiliários da América Latina trabalhando bem no sentido de proteger os interesses dos pequenos acionistas? Os fatos apontam em duas direções. "As autoridades das grandes bolsas são extremamente profissionais e sérias com relação ao cumprimento das normas", disse Wright do BID. Mas a situação é menos animadora em alguns dos países menores que só recentemente estabeleceram bolsas. Em alguns casos, a legislação inadequada e a escassez de profissionais qualificados em regulamentação criam o ambiente propício a graves abusos - quando não os produzem diretamente.

Falando na conferência do BID, Gerard Carpio, gerente do Grupo de Pesquisa do Setor Financeiro do Banco Mundial, chamou a atenção para o cumprimento inadequado de normas adequadas. Segundo ele, "numerosos países divulgaram os requisitos do registro , mas em alguns casos as autoridades responsáveis não cassaram o registro de empresas que sabidamente publicaram informações distorcidas".

As conseqüências do cumprimento insatisfatório das normas podem ir muito além das possíveis perdas dos investidores individuais. De acordo com Ross Levine, professor da Universidade de Virgínia, Estados Unidos, uma pesquisa recente mostra que a qualidade das leis e dos regulamentos sobre valores mobiliários está diretamente ligada ao potencial de crescimento dos mercados mobiliários e indiretamente ao crescimento econúmico como um todo.

A razão disso, explicou Levine na conferência do BID, é que os mercados de valores mobiliários se baseiam na confiança. Comprar uma ação é como assinar um contrato: os investidores só o farão se tiverem garantias razoáveis de que os administradores da companhia trabalharão para aumentar o valor dessas ações e de que relatarão honestamente os seus progressos nesse sentido.

E deixou no ar a pergunta: "Se os acionistas minoritários suspeitam de que estarão correndo o risco de ser passados para trás, por que investiriam em ações?".
 

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