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O outro lado da revolução reprodutiva

Entre as mudanças sociais e econúmicas que ocorreram na América Latina durante a última geração, uma das que mais impressionam é a evolução do comportamento da mulher no tocante à reprodução.Como há pouco se noticiou neste boletim e em outras publicações, as taxas de fecundidade da América Latina caíram quase 50% a partir da década de 60, passando de uma média de seis filhos por mulher a pouco mais de três, e é provável que se registrem novas quedas. Os defensores do desenvolvimento da mulher aplaudem esta tendência, pois o declínio da fecundidade é identificado com níveis mais altos de educação entre as mulheres e com uma maior participação feminina na força de trabalho.

Essas tendências da fecundidade parecem igualmente indicar que a maioria das mulheres latino-americanas tem acesso a métodos anticoncepcionais eficazes, que lhes permitem controlar o número de filhos e o intervalo entre eles. De fato, as estatísticas parecem mostrar que, afinal, está desaparecendo a defasagem entre as metas reprodutivas da mulher e a realidade de sua experiência reprodutiva.

Infelizmente, o que existe por trás das estatísticas é uma realidade mais complexa e menos alentadora. Embora a maioria das mulheres latino-americanas esteja tentando limitar sua fecundidade, uma grande proporção ainda não tem acesso às informações, aos serviços e aos métodos anticoncepcionais necessários para alcançar essa limitação com segurança e constância. Em conseqüência, muitas continuam a ter filhos que não foram planejados nem eram desejados. Pressionadas sem tréguas pelas necessidades financeiras de alimentar, vestir e educar os filhos que já têm, um número excessivo de mulheres latino-americanas recorre ao aborto.

Segundo um estudo abrangente divulgado o ano passado pelo Alan Guttmacher Institute - um grupo de pesquisa da reprodução sediado em Nova York -, cerca de 30% de todas as gravidezes da região acabam em aborto provocado. O estudo observa que este índice, comparável ao da China, é um dos mais altos das regiões em desenvolvimento do mundo.

O estudo constata que cada mulher latino-americana está provocando em média 1,2 aborto durante a vida. Ainda mais perturbador é o fato de que muitas dessas intervenções são executadas por pessoas não qualificadas e em condições perigosas. Segundo o mesmo estudo, calcula-se em 800.000 o número de mulheres latino-americanas hospitalizadas anualmente devido a hemorragias, infecções e outras complicações decorrentes de abortos provocados.

Cláudio de Moura Castro, que dirige a Divisão de Programas Sociais do BID, explica que, em alguns países, a dificuldade de conseguir um aborto profissional leva muitas mulheres de baixa renda a deliberadamente fazer perigosas autointervenções a fim de ser admitidas num pronto-socorro onde se complete o aborto. "Estes episódios representam um terrível únus para a saúde da mulher e encarecem substancialmente os sistemas de saúde já sobrecarregados", observa Castro. "E eles se originam na falta de acesso a métodos de planejamento familiar."

Castro observa também que outra prova da falta de opções anticoncepcionais é a alta incidência da esterilização feminina cirúrgica em vários países da região, particularmente no Brasil. "Nos lugares onde a mulher tem como optar entre vários métodos anticoncepcionais a preços módicos, os casos de esterilização não ocorrem em número tão grande", explica ele.

Déficit de anticoncepcionais.

Assim, embora as condições para a mulher latino-americana sem dúvida estejam melhorando, os números relativos ao aborto provocado e à esterilização mostram que a oferta de meios eficazes de planejamento familiar é insuficiente em relação à demanda. "A principal causa subjacente do aborto provocado na região é a falta de acesso a informações e a serviços de planejamento familiar", diz Mayra Buvinic, chefe da Unidade da Mulher no Desenvolvimento do BID. Sua afirmação é confirmada por números compilados pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Segundo o relatório do Fundo sobre a situação da população mundial publicado este ano, a porcentagem de mulheres da América Latina que gostaria de controlar a própria fecundidade mas carece de anticoncepcionais eficazes varia entre 17% na Colúmbia e 43% na Bolívia. Em outros países latino-americanos, cerca de 25% das mulheres, em média, afirmam ter "necessidades insatisfeitas" de anticoncepcionais eficazes.

O problema é particularmente grave entre as adolescentes, segundo Buvinic. Entre as décadas de 80 e 90, a fecundidade aumentou entre as adolescentes do Brasil e da Colúmbia. "Qualquer aumento de fecundidade entre adolescentes é particularmente alarmante", diz ela, "porque são elas que sofrem as conseqüências mais sérias da gravidez indesejada".

Novas abordagens.

As proporções que o problema está assumindo acentuam a urgência de soluções "indiretas" ao não atendimento das necessidades de planejamento familiar.

"Cada vez mais, os especialistas em saúde reprodutiva citam a educação, o emprego e a auto-estima como os mais eficazes anticoncepcionais", diz Clotilde Charlot, especialista em desenvolvimento social da Unidade da Mulher no Desenvolvimento do BID e que administrava anteriormente um grande programa de saúde reprodutiva para mulheres que trabalham no Haiti. "A menos que se dê às mulheres de baixa renda a oportunidade de desenvolver qualificações que tenham mercado, de gerar renda e reforçar sua auto-estima, os responsáveis pela prestação de serviços de planejamento familiar não conseguirão reduzir a gravidez não planejada."

Muitas das mulheres mais necessitadas de assistência terão de esperar anos para se beneficiar da melhoria nas condições de treinamento e emprego, mas Buvinic enxerga sinais alentadores nos serviços de planejamento familiar, graças, em parte, a uma pequena revolução ocorrida no campo da saúde reprodutiva ao longo da última década. No passado, os serviços de planejamento familiar tendiam a concentrar-se na promoção de métodos anticoncepcionais e na distribuição de contraceptivos, explica Buvinic. Em muitos países, tais serviços eram prestados por um único órgão governamental ou por pequenas instituições sem fins lucrativos. Muitas vezes, estes serviços simplesmente ignoravam outros aspectos da saúde reprodutiva, como o aconselhamento pré-natal e pós-natal ou os problemas relacionados com a saúde sexual e com as doenças sexualmente transmitidas.

O resultado é que a maioria das pessoas só recebia informações e assistência fragmentárias relacionadas com sua saúde reprodutiva e muitas perguntas ficavam sem resposta, o que levava a práticas ineficazes em matéria de planejamento familiar.

Buvinic informa que hoje os profissionais da saúde recomendam que se trate de forma integrada de todas as áreas relacionadas com a saúde reprodutiva, inclusive aquelas que afetam os homens. Com isso se busca abordar todas as necessidades físicas, sociais e psicológicas da pessoa no que diz respeito ao sexo e à reprodução. Em vez de apoiar-se exclusivamente na profissão médica, esse enfoque defende os esforços coordenados de educadores, assistentes sociais, psicólogos e políticos.

O BID está promovendo esta abordagem integrada da saúde reprodutiva em vários países, conta Buvinic. O componente relativo a serviços de saúde de um empréstimo do Banco de US$60 milhões ao Fundo de Investimento Social da Bolívia, por exemplo, inclui a meta específica de aumentar de 35% para 60% o número de mulheres que recebem informações ou treinamento sobre métodos anticoncepcionais. Esta meta, por sua vez, é parte de um programa para ampliar o acesso ao atendimento pré-natal e reduzir a mortalidade infantil e materna.

No México, um Programa de Serviços Sociais Essenciais no valor de US$ 500 milhões, parcialmente financiado pelo BID, combina metas anuais para expandir serviços de planejamento familiar com um programa de nutrição e aconselhamento para mulheres grávidas e lactantes.

Na Venezuela, a Associação para a Educação Sexual Alternativa (AVESA), uma ONG dedicada à educação sexual de adolescentes, está usando um empréstimo não reembolsável de cooperação técnica, no valor de US$500.000, para financiar uma inovadora campanha de informação pública cujo alvo são adolescentes de famílias de baixa renda. A campanha inclui anúncios curtos pelo rádio e inserções em jornais com informações francas sobre formas de evitar a gravidez e doenças sexualmente transmitidas. A AVESA está também levando seus materiais educativos a 60 escolas e organizações juvenis que já trabalham com jovens em situação de desvantagem.

Estes projetos, juntamente com várias outras atividades financiadas pelo BID, representam o começo de uma mudança fundamental na forma de prestar serviços de planejamento familiar na América Latina. "Estou convencida de que o conceito de serviços integrados de saúde reprodutiva foi adotado pela liderança de toda a região", diz Buvinic. "Agora, o desafio consiste em implementá-lo.”

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