Charo Quesada
Para muitas mulheres, a palavra “Pequim” traz à mente muito mais do que uma localidade na China. Para elas, é um lembrete do movimento histórico de 1995, em que milhares de mulheres do mundo inteiro, representadas por delegações oficiais e organizações da sociedade civil, expuseram uma lista de injustiças, desigualdades e abusos sofridos por mulheres em toda parte.
Mas a conferência foi muito mais do que discursos para afogar mágoas. As delegadas de Pequim também lançaram um Plano de Ação em que pedem que governos e instituições internacionais assumam um compromisso com a mudança. Isso significa avançar com seriedade no sentido de reformas radicais destinadas a melhorar a igualdade de gênero e aumentar a participação das mulheres em todas as esferas da sociedade, da política e economia a questões sociais e culturais.
O desafio de Pequim não desapareceu num vácuo. “Nos últimos dez anos”, de acordo com um relatório recente da Secretaria Geral das Nações Unidas, “muitos países aprovaram novas leis e implantaram reformas judiciárias destinadas a reduzir a discriminação e a violência contra as mulheres e a melhorar sua situação econômica e social.”
Rosario Green.
Na América Latina e no Caribe, um dos avanços mais notáveis foi uma presença maior de mulheres nos Parlamentos e na administração governamental. Em média, houve um aumento de 10% em toda a região, como resultado da adoção de sistemas de cotas. Os países latino-americanos e caribenhos também ratificaram acordos internacionais para pôr fim à discriminação, promover igualdade de gênero e proteger as mulheres de todos os tipos de violência. Muitos países modificaram sua legislação e regulamentações oficiais para cumprir os compromissos assumidos, ou estão em via de fazê-lo.
Mais débitos do que créditos. A tarefa proposta pelas mulheres que compareceram à conferência de Pequim era tão difícil, complexa e ampla que seu saldo final nunca sai do vermelho, por mais que os números sejam ajustados. “Os Estados falharam em implementar de forma significativa as obrigações que aceitaram”, disse Louise Arbour, a alta comissária da ONU para os Direitos Humanos, no aniversário da conferência, dia 8 de março. “Apesar dos grandes avanços no estabelecimento de padrões orientados para a proteção dos direitos humanos das mulheres, estes continuam a ser violados regularmente em todos os países do mundo.”
Mala Htun.
Opiniões semelhantes foram expressas por mulheres em posições destacadas de liderança na América Latina e no Caribe durante o seminário “Uma Década após Pequim”, sediada pelo BID no dia 8 de março. “Ainda estamos muito atrasadas, apesar de todos os compromissos que assumimos”, disse Rosario Green, ex-ministra das Relações Exteriores do México e ex-consultora para questões de gênero da Secretaria Geral da ONU.
Green e outras oradoras presentes ao evento concordaram em que o desafio é que novas leis de igualdade de gênero não podem ser aplicadas sem recursos adicionais e uma mudança mais profunda. “Para cumprir todos os compromissos de eqüidade, é preciso transformar a estrutura política e econômica atual”, disse a parlamentar costa-riquenha Epsy Campbell. “O poder está muito concentrado, e os países estão adotando políticas macroeconômicas e nacionais que não levam em conta esses acordos.”
Várias oradoras feministas atribuíram à falta de vontade política a responsabilidade pelo lento progresso em áreas que afetam as mulheres num plano individual – educação, saúde, acesso a oportunidades econômicas, participação na tomada de decisões políticas e os direitos humanos mais básicos. O avanço no campo político “tem sido mais simbólico do que real”, disse Mala Htun, professora na New School University em Nova York. “A inclusão de mulheres em cargos políticos não significa que as questões femininas estejam sendo abordadas.” Campbell acrescentou que “o desafio é conseguir que os homens ajudem a realizar essas mudanças”.
Vidas em perigo. O não-cumprimento dos tratados de direitos humanos internacionais põe em perigo diário a vida das mulheres. A violência contínua contra a mulher em todas as partes do mundo (em particular em conflitos armados), a incidência crescente de HIV/Aids, o tráfico de pessoas e a ausência de direitos sexuais e reprodutivos são apenas algumas das ameaças constantes.
Susana Villarán.
De acordo com a Organização Mundial de Saúde, uma em cada três mulheres é vítima de violência doméstica. “Em nossa região, esse problema tem conseqüências dramáticas para a saúde pública, a economia e a sociedade”, disse Susana Villarán, da Comissão dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). “Ele é produto de relações de poder desiguais. Se algo está alimentando esse fenômeno, pode-se atribuir isso ao fato de que muitos casos ficam impunes. A maioria deles jamais passa dos estágios preliminares de investigação. Esse é um problema muito sério.”
Villarán criticou a falta de recursos e a fragilidade da estrutura institucional, observando que “os escassos investimentos públicos nessa área mostram que os governos não estão dando muita prioridade aos problemas das mulheres”. Em 2004, uma investigação oficial na Guatemala mostrou que 1.168 mulheres haviam sido assassinadas no país desde 2001. De janeiro a setembro de 2004, somaram 352. “A intenção por trás dessas mortes é de dar o exemplo”, disse Villarán. “O corpo é deixado como uma mensagem de terror: fazer a mulher voltar para dentro de casa, tirá-la dos espaços públicos, que não lhe pertencem.”
Embora o secretário-geral da ONU, Kofi Annan, tenha dito que “políticas de igualdade para as mulheres são importantes para evitar conflitos e para se chegar à reconciliação depois que os conflitos tiverem terminado”, os processos de paz não incluem as mulheres – ainda que sejam elas que suportam o peso maior da violência relacionada com a guerra, de acordo com Rosario Green. Ela citou estudos que indicam que 80% das pessoas que se tornam refugiadas ou são deslocadas pela violência são mulheres e crianças.
Virginia Camacho.
A mortalidade materna é um problema tremendamente sério, e é essencial que se chegue a um compromisso político para promover e garantir políticas públicas efetivas. “A cada ano, 23.000 mulheres morrem na região por causas ligadas a gravidez e parto, todas essas mortes são evitáveis”, disse Virginia Camacho-Hubner, da Organização Pan-Americana de Saúde (OPS). “As causas de morte são básicas: hemorragias, infecções, hipertensão. Essas mulheres não recebem um mínimo de cuidados pré-natais. Muito poucas têm a preparação adequada para o parto. Mulheres estão morrendo porque a sociedade ainda não decidiu se vale a pena ter o trabalho de salvar sua vida”, advertiu.
Não desistir. Beatriz Paredes, professora associada de economia na University of Utah, discutiu o papel fundamental das mulheres das áreas rurais da América Latina e do Caribe que trabalham em “tripla jornada” – emprego, trabalho de casa e marido e filhos – mas mesmo assim não conhecem seus direitos. “Temos de criar estratégias de financiamento para as mulheres das áreas rurais”, enfatizou ela. A lição importante das mulheres latino-americanas, observou Campbell, é “a capacidade que têm de administrar seus recursos mesmo vivendo na pobreza”.
Enrique V. Iglesias, presidente do BID, reforçou o compromisso do Banco com a questão da igualdade de gênero e destacou o papel extremamente importante desempenhado pelas organizações de mulheres na luta pela igualdade. Ele comentou também que o BID foi a primeira instituição multilateral a documentar o custo da violência doméstica e enfatizou que esse problema é um item permanente na agenda do Banco.
Por ocasião deste 10o aniversário da conferência de Pequim, uma comissão da ONU examinará e avaliará os problemas atuais. Espera-se que essa comissão recomende ações positivas com melhorar o acesso das mulheres aos serviços de saúde, incluindo a prevenção e tratamento de HIV/Aids e o atendimento à saúde materna; aumentar a consciência pública quanto aos direitos humanos das mulheres; ampliar a presença feminina em posições decisórias no governo e na sociedade civil; expandir as oportunidades econômicas das mulheres; adotar medidas para evitar a violência contra mulheres, incluindo o tráfico humano, e para acabar com a impunidade dos agressores; e reduzir os conflitos armados, aumentando, ao mesmo tempo, a participação das mulheres na prevenção e solução de conflitos, assim como nos processos de paz.
“As mulheres estão não só mais conscientes de seus direitos, como também mais capazes de exercê-los”, disse Kofi Annan num pronunciamento referente ao 10o aniversário da conferência de Pequim. “Repetidos estudos demonstraram que não há ferramenta mais eficiente para o desenvolvimento do que aumentar o poder de participação das mulheres.”