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Não tão iguais perante a lei

Charo Quesada

No papel, a América Latina é quase um modelo de justiça igualitária e neutra em relação aos gêneros. Praticamente todos os governos da região assinaram e ratificaram acordos internacionais que garantem acesso aos tribunais e igualdade perante a lei independentemente do sexo da pessoa.

Isso poderia levar as pessoas a concluir que todos agora podem dormir em paz: os políticos, porque puseram sua assinatura nos acordos; os homens, porque acreditam que a lei é garantia suficiente dos direitos das mulheres; e as próprias mulheres, porque confiam em que esses avanços significam que perante a lei elas finalmente são iguais aos homens.

No entanto, de acordo com um novo estudo das Nações Unidas sobre gênero e igualdade em 16 países latino-americanos, na prática a situação não é tão tranqüila. Embora tenha a lei ao seu lado, quando uma mulher que foi vítima de qualquer tipo de abuso ou crime procura a justiça, ela com freqüência se vê diante de uma corrida de obstáculos. As instalações judiciais onde ela deve apresentar sua queixa são de difícil acesso e inadequadas. Em muitos casos, esses locais não oferecem privacidade, de modo que ela se vê obrigada a relatar seu problema diante de estranhos. Os defensores públicos a quem compete lidar com essas queixas geralmente enfrentam excesso de trabalho, e sua formação é insuficiente. Em países que adotaram recentemente julgamentos e procedimentos judiciais orais (em vez do sistema escrito tradicional), as mulheres também precisam lutar por credibilidade em ambientes de tribunal ainda dominados por juízes e advogados homens. Muitos juízes não compreendem as obrigações envolvidas na aplicação igualitária da lei. Além disso, a falta de uma organização sistematizada da nova jurisprudência nessa área leva muitas vezes os tribunais a emitir veredictos inconsistentes.

Diante da intimidação representada por todos esses obstáculos, algumas mulheres desistem de suas causas e resignam-se a um resultado injusto.

Justiça de alta qualidade. “Todos os acordos internacionais exigem igualdade. Os sistemas judiciários, em particular, devem fazer que os juízes acatem essas regras, embora muitos deles nem tenham conhecimento delas”, disse Alda Facio, diretora do Programa de Mulheres, Justiça e Gênero, do Instituto Latino-americano das Nações Unidas para a Prevenção do Crime (ILANUD em espanhol). Facio e o subdiretor do programa, Rodrigo Jiménez, apresentaram recentemente no BID um estudo sobre justiça igualitária, de sua autoria, realizado em 16 países da região.

Com base em entrevistas com dezenas de juízes, outras autoridades judiciárias e mulheres que dirigem instituições públicas na América Latina, o estudo apresenta um quadro de avanços modestos e com um longo caminho ainda a percorrer – uma situação semelhante à de muitas outras regiões em desenvolvimento. “Obteve-se progresso em tornar a justiça mais rápida, mas não em conseguir justiça de alta qualidade”, afirma o estudo.

As mulheres saem perdendo. Uma das descobertas do estudo é que as mulheres tendem a receber penas máximas por tráfico de drogas, enquanto homens que trafiquem as mesmas quantidades podem até sair livres se cooperarem com o sistema judiciário. As leis de paternidade, fundamentais para muitas mulheres chefes de família, são aplicadas desigualmente em toda a região e oferecem pouca flexibilidade para as formas de pagamento de pensões alimentícias. Há enormes falhas na aplicação da legislação de violência doméstica, que enfatiza a proteção da vítima em detrimento da prevenção e solução do problema no longo prazo. Em países como a Bolívia e a Guatemala, em que o número de mulheres indígenas bilíngües costuma ser bem menor que o de homens, muitas delas cumprem longas penas na cadeia sem saber o motivo, simplesmente porque não dispunham de intérprete durante os procedimentos judiciários.

Estes são alguns dos exemplos que Facio e Jiménez citaram para ilustrar que o compromisso com uma justiça igualitária para as mulheres deixa muito a desejar na prática, apesar de as mulheres constituírem a maioria da população latino-americana: no total, elas são 50,3% da população da região, enquanto 49,3% são homens. Além disso, 28,8% das mulheres são chefes de família e 23%, mães solteiras.

“Até mesmo os movimentos feministas concentraram-se mais na legislação do que no sistema judiciário”, comenta Jiménez. “Mas não há políticas de gênero dentro dos sistemas judiciários, nem protocolos para incorporar uma perspectiva de gênero.” Isso significa que muitos juízes nem sequer têm consciência de que estão aplicando a lei desigualmente. De acordo com o estudo, apenas 7% dos países pesquisados analisaram seu desempenho nessa área. As chamadas “comissões de gênero”, que são criadas para cuidar desses problemas, só são efetivas quando as mulheres  detêm uma posição forte no país.

Às vezes os juízes não têm conhecimento dos critérios aplicáveis para os mesmos tipos de casos, tanto em seu país quanto fora dele. “Na Costa Rica, a falta de sistematização da jurisprudência faz com que um tribunal possa aplicar os mesmos critérios de diferentes maneiras, o que transforma a sentença numa ‘questão de sorte’”, diz Facio.

Recomendações. Facio e Jiménez têm muita esperança de que os acordos internacionais serão postos em prática, porque “há um enorme interesse por direitos humanos na região, o que, por sua vez, é uma maneira de incutir uma perspectiva de gênero”. “Em nossos 12 anos de trabalho, vimos mudanças incríveis acontecerem graças ao crescente número de juízes com maior percepção do problema de gênero”, afirmou Facio.

Uma dessas mudanças ocorreu na Costa Rica, como resultado da nova legislação de paternidade que entrou em vigor há três anos. “Os testes de paternidade são responsabilidade do homem”, explicou Facio. “O homem deve se submeter a um teste genético pago pelo governo, e, se o teste comprovar a paternidade, ele incorre em obrigações a partir do momento em que a mãe tiver registrado o filho como dele no cartório. Daí em diante, sua mobilidade fica restringida, o que inclui, por exemplo, qualquer viagem não-autorizada para fora do país. O impacto dessa medida foi tal, que produziu uma redução na taxa de natalidade da Costa Rica”, disse ela.

Facio e Jiménez também recomendam que se façam estudos aprofundados e se estabeleçam instâncias internacionais de jurisprudência para proporcionar aos juízes informações sobre perspectivas baseadas em gênero. Outras sugestões são a organização de conferências para juízes, a criação de comissões de gênero de alto nível, um trabalho com a sociedade civil e a criação de mais instâncias de assessoria e orientação voltadas para as mulheres.

“Sou um otimista”, diz Jiménez. “Há enorme perspectiva de futuro. Mas nosso discurso teórico inicial precisa enfatizar o cumprimento dos acordos internacionais e o cumprimento da lei.”

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