O mundo todo sabe que a América Latina tornou-se um bastião da democracia na última década, sendo que todos os países da região, menos um, têm governos e legislativos nacionais livremente eleitos.
Mas poucos observadores estrangeiros compreendem o quanto o processo democrático se aprofundou nos governos locais da região. Após décadas em que os dirigentes municipais e estaduais eram escolhidos a dedo por remotos governos federais como forma de apadrinhamento político, as cidades e vilas da região estão exercendo seu direito de eleger - e fazer com que prestem contas - seus próprios líderes. De fato, enquanto em 1980 apenas três países da América Latina elegiam seus prefeitos por voto popular, 17 hoje o fazem, enquanto em outros sete países eles são nomeados por conselhos municipais eleitos.
Essa mudança é parte de um processo sem precedente de descentralização da autoridade que correu paralelo às reformas econômicas e políticas adotadas pela maioria dos governos da América Latina na última década. A abolição dos controles sobre comércio, produção e financiamento restaurou a independência da tomada de decisões dos negócios e dos indivíduos no nível microeconômico. A estabilização macroeconômica conseguiu criar um ambiente favorável a essas decisões, ajudando a afastar a incerteza relacionada com a inflação, reduzindo ao mesmo tempo a instabilidade financeira e cambial.
Como resultado, os partidos políticos e os eleitores começaram a afirmar seu direito de determinar como os recursos locais serão usados para resolver problemas locais e regionais. Sob pressão dos eleitores, os governos centrais estão demonstrando uma crescente disposição para descentralizar os mecanismos fiscais e tributários. Isso colocou quantias de dinheiro sem precedentes nas mãos dos governos municipais, os quais também aceitaram a responsabilidade pelo fornecimento de serviços como educação, saúde e saneamento e pela construção e manutenção de uma grande variedade de projetos locais de infra-estrutura.
FÓRMULA PARA O DESASTRE?
Há pouco tempo, esse quadro teria alarmado muitos economistas, que freqüentemente argumentam que o processo decisório localizado e coletivo tende a minar a disciplina fiscal e criar incentivos distorcidos para os participantes. Em resumo, partem do princípio que os funcionários locais ou malbaratam os recursos para atender agendas de curto prazoou pedem dinheiro ao governo na expectativa de que outros paguem a conta.
No entanto, a América Latina está dando sinais de que consegue manter em cheque essas tendências, que são um subproduto inevitável de qualquer sistema democrático. De fato, a administração fiscal pública e seu desempenho têm melhorado na maior parte dos países da América Latina, mesmo com a descentralização e democratização dos governos. Muitos países latino-americanos têm déficits fiscais mais baixos do que a média entre os países industrializados. Como explicar isso?
A edição de 1997 do relatório do BID sobre o progresso sócio-econômico da América Latina analisa em profundidade essa aparente contradição. Com base em estudos de caso de vários países da região, o relatório conclui que a medida em que a disciplina fiscal é preservada num ambiente politicamente descentralizado depende de como o processo decisório público é organizado.
Mais especificamente, o sucesso depende das regras e instituições que governam as decisões orçamentárias e os sistemas eleitorais, porque essas regras determinam como as sociedades lidam com o difícil processo de alocação dos recursos públicos. Num contexto descentralizado e democrático, esse processo enfrenta quatro desafios básicos.
Primeiro, as instituições orçamentárias precisam examinar minuciosamente as preferências divergentes e freqüentemente contraditórias do eleitorado. Segundo, é preciso desencorajar vários grupos de interesse de tentar fazer com que os outros paguem a conta de sua lista de pedidos. Terceiro, não se deve permitir a políticos e burocratas que modifiquem o processo de decisão de forma a beneficiá-los à custa do bem comum. Finalmente, as instituições orçamentárias precisam encontrar meios de sobrepujar o pensamento de curto prazo em favor do compromisso com a escolha de políticas dignas de confiança que resultem em benefícios de longo prazo.
Cada uma dessas pressões, se não for controlada, pode minar a credibilidade e a eqüidade do processo de alocação de recursos e levar a déficits fiscais descontrolados. Embora haja muitas formas de controlar essas tendências, os estudos de caso na América Latina indicam que grande parte das abordagens bem-sucedidas combina a ênfase na transparência do processo de elaboração do orçamento com um conjunto de salvaguardas sistemáticas contra gastos deficitários.
O CONTROLE DA OPINIÃO PÚBLICA.
A transparência pode ser melhorada basicamente mediante regras que requeiram audiências públicas e a divulgação freqüente dos planos orçamentários propostos. Mas fundamentalmente a transparência do processo depende da força das instituições democráticas locais. Grupos cívicos ativos, regras claras sobre financiamento de eleições e partidos políticos, uma imprensa livre e competitiva e um judiciário independente são cruciais para expor e portanto desencorajar a corrupção ou a pressão de grupos de interesse no processo de elaboração do orçamento. Quando a democracia local é fraca, áreas importantes da vida pública escapam da fiscalização social, os grupos de interesse exercem uma influência exagerada e aumentam as oportunidades de gastos deficitários.
Somente a transparência, porém, não garante a disciplina fiscal. Por isso, os governos regionais bem-sucedidos adotaram três tipos amplos de salvaguarda sob a forma de regras para os gastos.
--- Regras que evitem que os governos locais passem a depender excessivamente das receitas fiscais do governo central para financiar projetos locais. Os governos deveriam vincular esses projetos a receitas arrecadadas localmente a partir de impostos prediais e sobre combustível, pedágios e outras fontes.
--- Regras que garantam a estabilidade da receita governamental local. As transferências de receitas nacionais para os cofres municipais não deveriam se basear na simples porcentagem do total da arrecadação, que está sujeita a flutuações periódicas do ciclo de negócios, o que pode levar a quedas e déficits súbitos. Uma abordagem melhor é vincular as transferências da receita nacional a reembolsos de custo.
--- Finalmente, políticas orçamentárias eficazes que imponham limites estritos sobre a capacidade de endividamento dos governos locais. No passado, muitos governos estaduais e municipais que tinham permissão para tomar emprestado endividaram-se, partindo do princípio que o governo central viria em seu socorro em caso de inadimplência.
Embora a maior parte dos governos locais da região esteja apenas começando a desenvolver conhecimentos mais especializados na complexa arte da alocação de recursos, os primeiros resultados da ênfase na transparência e em regras orçamentárias mais rígidas têm sido promissores.
*O autor é o Economista-chefe do Banco Interamericano de Desenvolvimento.