Roger Hamilton
ACRE, BRASIL — Há estradas, e há a BR-364, a rodovia que forma a espinha dorsal do estado do Acre, no oeste da Amazônia brasileira.
Ela é, em primeiro lugar, uma estrada com uma história turbulenta e, para muitos, perturbadora. A rodovia nasceu durante a ditadura militar no Brasil, num período em que as decisões sobre grandes projetos eram tomadas em Brasília, a capital do país, com pouca ou nenhuma preocupação com seu impacto sobre a população local ou o meio ambiente.
O Banco Mundial financiou o primeiro trecho da BR-364, que cortava o estado de Rondônia até a sua capital, Porto Velho. O Banco Interamericano de Desenvolvimento ajudou a financiar o segmento até Rio Branco, a capital do estado vizinho do Acre. Ao longo do processo, e pelos anos que se seguiram, o projeto da estrada foi acompanhado de intenso desmatamento, desorganização de comunidades tradicionais e violência, mais notadamente o assassinato do ativista florestal Chico Mendes.
Depois, porém, a estrada mudou seu curso em direção a uma nova era. Após algumas discussões com o governo brasileiro, foi criado um programa ambiental de US$10 milhões, e o BID atuou como mediador de um acordo entre os grupos em conflito – seringueiros, autoridades governamentais, indígenas, militares – sobre como os fundos desse programa deveriam ser empregados (ver a reportagem especial “Na Amazônia”). Entre outras coisas, o programa criou as primeiras reservas extrativistas do país, uma categoria de áreas protegidas que acolhe as pessoas, em vez de excluí-las.
Agora, o BID está ajudando a financiar a pavimentação de 70 quilômetros de estrada entre a cidade de Tarauacá e a cidade portuária fluvial de Cruzeiro do Sul, mais a leste do estado. Quando esse segmento estiver pavimentado, tornará possível a passagem de veículos durante o ano inteiro, cruzando três rios.
Embora essa seja a mesma conturbada BR-364, o BID e o governo do estado do Acre estão determinados a não repetir os erros do passado. Ao lado de grupos privados e membros da comunidade local, vêm sendo adotadas medidas para proteger tanto a floresta como os meios de vida da população da área (ver o artigo “Será que os ambientalistas vão aprender a amar essa estrada?”).
Fernando Moutinho é o encarregado da complexa tarefa de construir a estrada.Uma proeza de engenharia. Fernando Moutinho conhece essa história mas, no momento, tem coisas mais imediatas em mente. Ele é o encarregado de coordenar o projeto de construção, a serviço do departamento de estradas de rodagem do governo estadual, o Deracre.
Moutinho postou-se num ponto mais elevado,de onde podia ver todo o balé das máquinas pesadas: as escavadeiras carregando caminhões com terra vermelha, os buldôzers ajudando a abrir caminho para as motoniveladoras, os 4 x 4 dos engenheiros e supervisores movendo-se entre os contornos esculpidos na terra. O sítio estava agitado com homens e máquinas, e também com o fluxo normal de carros, caminhões e ônibus que usam a estrada para o transporte de pessoas e carga. Essa pode ser uma combinação perigosa, por isso, como medida de segurança, os motoristas de caminhão precisam passar pelo teste do “bafômetro”.
A pavimentação propriamente dita já está sendo feita, e cabe a Moutinho garantir que os 120 quilômetros totais de pavimentação adicional necessários para ligar as duas cidades estejam concluídos até o prazo estabelecid dezembro de 2006.
Embora todos os engenheiros que trabalham na construção de estradas precisem lidar com peculiaridades de geologia, topografia e logística, a BR-364 é um tipo especial de rodovia.
Numa viagem ao longo da BR-364, alguns trechos precisam ser atravessados em balsas, nos pontos em que a estrada cruza alguns rios. Nesses locais, serão construídas pontes.Moutinho deu alguns exemplos:
- Não há pedras na área para construir o leito da estrada.
- Não há areia adequada para fazer concreto.
- O solo argiloso é muito elástico, capaz de uma expansão e contração de 37% de seu volume; ele precisa ser removido.
- O trajeto da estrada corta perpendicularmente uma rede de rios e riachos, o que requer a construção de muitas pontes.
- As pontes precisam levar em conta a ampla variabilidade dos níveis dos rios, que passam de quase fios de água na estação seca, quando é possível que a quantidade de chuvas não ultrapasse os 50 milímetros em julho, a torrentes que às vezes quase encobrem as pontes em março, quando o volume de chuvas atinge até 300 milímetros.
- · Os rios com freqüência alteram seu curso.
E há também a logística. A equipe de Moutinho precisa começar a transportar pedras, areia, aço e outros materiais em janeiro, para percorrer os milhares de quilômetros por rios e estradas em tempo de pegar a estação seca, quando as máquinas podem trabalhar. Por exemplo, o cimento embarcado em Manaus tem de viajar 3.252 km por rio. A cal precisa ser transportada de caminhão por 1.552 quilômetros até Belém e, de lá, 4.654 km até Cruzeiro do Sul.
Até mesmo a história tecnológica da estrada volta para assombrar os engenheiros. A rota de terra original foi aberta pelos militares na década de 1970, e os operários usaram troncos para firmar os trechos menos sólidos. Agora, esses mesmos troncos, muitos deles enterrados e ocultos no solo, precisam ser encontrados e removidos. Caso contrário, irão apodrecer e produzir depressões no asfalto.
As dificuldades de engenharia e logística são uma parte do problema. Outra parte dele são os possíveis impactos sociais e ambientais. Com muita freqüência, estradas são planejadas e construídas segundo as exigências de considerações políticas e econômicas de curto prazo. Os impactos diretos e indiretos sobre o meio ambiente e as comunidades locais são freqüentemente ignorados.
O solo elástico representa um desafio para a construção de estradas.No caso da BR-364, porém, Moutinho tem plena consciência de que a estrada é apenas parte do projeto. “O governo diz que a construção de uma estrada não é um fim em si mesma, mas um meio para alcançar um fim, que envolve respeitar os cursos de água, as áreas arqueológicas e a própria floresta”, disse ele. Por isso, desde que o governo estadual em exercício começou a construir estradas em 2000, seu departamento de estradas de rodagem contratou especialistas em identificar problemas e encontrar soluções. Isso pode tornar a vida de Moutinho um pouco mais complicada, mas é o preço a pagar para construir estradas na Amazônia.
“Muitas vezes, as pessoas destroem o meio ambiente por ignorância”, disse ele. “Agora, temos uma nova consciência, fazemos mais estudos, usamos materiais melhores”, explicou. “Quando precisamos limpar uma área, nós a replantamos depois.”
A construção de uma “estrada verde” não foi algo que Moutinho aprendeu na faculdade de engenharia. “É uma coisa que fazemos porque hoje temos um governo que está muito interessado em proteger a floresta e as pessoas que vivem nela”, disse. “Trabalhar dessa maneira é, agora, nosso procedimento padrão. Ninguém chega e nos diz que precisamos fazer isso ou aquilo. Nós o fazemos automaticamente.”
Há balsas de todos os tamanhos ao longo da BR-364.Ainda assim, para a maioria dos ambientalistas, a nova estrada é vista como um arquiinimigo, devido ao seu poder de produzir mudanças extensas, que incluem o afluxo de pessoas e a destruição da floresta.
“Por que os conservacionistas dizem isso?”, continuou Moutinho. “É precisamente porque os governos que construíram estradas anteriormente não se deram ao trabalho de dizer: ‘Não, nós não vamos derrubar a floresta. Nós não vamos destruir. Vamos conservar’. Essa é a função do governo. Os governos precisam adotar essa política.” Mas e se houver uma mudança de governo? “Então as pessoas precisam insistir em que essa política seja mantida”, disse Moutinho, “porque, se a floresta for transformada num pasto, tudo será destruído.”