Na maioria dos lugares, a temporada de chuvas marca uma época de abundância. As sementes brotam, o gado engorda, as despensas e os cofres se enchem. Mas não em Mamirauá, um triângulo de água entre os rios Japurá e Solimões, no Brasil, a 600 quilômetros a oeste de Manaus. Com a cheia anual dos rios, a terra diminui e as pessoas apertam os cintos.
Tito Cavalcante Martins rema silenciosamente sua canoa por entre troncos de árvores e galhos que afloram à superfície. Há dois meses, disse ele, podia-se andar por esta floresta e não molhar os pés. Hoje, este é o reino do tambaqui, um peixe que se alimenta de frutas que caem das árvores na água. É também o habitat de muitas outras criaturas que Martins aponta no dossel das árvores: grupos de macacos, preguiças placidamente ruminando folhas, bandos barulhentos de papagaios, um tucano, o lampejo de uma arara vermelha.
Mas o arpão feito a mão de Martins nunca sai de seu lugar na amurada. Volte na estação seca, diz ele, quando os peixes se amontoam nos canais e lagos que vão secando, tornando-os presa fácil não só dos pescadores mas dos jacarés e de grandes bandos de pássaros.
Tudo fica mais difícil quando o nível da água sobe. As pessoas correm a colher a mandioca, antes que o rio inunde as hortas. Preparam os currais flutuantes e começam o trabalho tedioso de cortar grama e pastagem para alimentar o gado. Constroem jardins flutuantes.
Todo mundo anda de canoa ou barco a motor - para ir à escola, visitar os vizinhos, até para ir à latrina. Alguns pegam um barco que desce o rio para tentar encontrar trabalho sazonal na cidade mais próxima, Tefé.
A água continua a subir. Os que vivem em casas flutuantes checam as cordas que as prendem às árvores. Os que vivem em palafitas preocupam-se com o nível das águas: se sobe demais, precisam cobrir o soalho com folhas de palmeira para não molhar os pés, empilhando-as cada vez mais alto à medida que a água sobe, às vezes até o ponto em que têm que andar abaixados.
É difícil imaginar outro lugar no mundo como Mamirauá. Embora o meio ambiente restrinja as atividades humanas, Mamirauá (que significa peixe-boi na língua indígena local) abriga um impressionante ecossistema de plantas e animais que desenvolveram modos engenhosos de se adaptar às mudanças sazonais. Muitas espécies são encontradas somente aqui e em nenhum outro lugar, como o macaco uacari e o mico-de-cheiro, ambas espécies ameaçadas de extinção.
De fato, foi o uacari branco que atraiu o biólogo brasileiro José Márcio Ayres à região em 1983 para realizar seus estudos de doutorado. Foi o primeiro cientista desde meados do século passado a fazer uma descrição desse macaco e se perguntou se não seria o último. Ayres se deu conta desde cedo que o futuro do uacari dependia da preservação do seu habitat, que estava sendo ameaçado pelo desmatamento. Ele começou uma campanha de proteção e, em 1990, o governador do Amazonas destinou uma área de 1.240.000 hectares de lagos e floresta para a Estação Ecológica Mamirauá. Foi a primeira reserva brasileira criada para proteger o ecossistema da várzea.
Em 1992, foi criada a Sociedade Civil Mamirauá para administrar a nova reserva. Embora seus esforços iniciais fossem se concentrar numa área primária de 260.000 hectares, o objetivo de longo prazo era ampliar a gestão para a reserva inteira.
Embora tenham sido atraídos a Mamirauá por seus tesouros naturais, Ayres e seus associados chegaram à conclusão de que a conservação não poderia ser levada a cabo isoladamente da comunidade que já existia. A ecologia ensina a interdependência das plantas e dos animais e desde o começo eles decidiram que a chave para preservar o ecossistema era a participação de uma espécie em particular: o homem.
As pessoas têm sido parte do ecossistema da várzea há muitos séculos e embora tenham modificado o meio ambiente de várias formas não o destruíram. Mas nos últimos anos as pressões começaram a aumentar. Pescadores profissionais de Manaus e da Colômbia estavam dizimando as reservas locais de peixes, empresas madeireiras estavam entrando pela floresta e a caça profissional ameaçava os peixes-bois, os pássaros aquáticos, os jacarés e as tartarugas.
A população local, dependente desses recursos em declínio, se sentia igualmente ameaçada. A solução, pensou Ayres, era que a população local participasse na elaboração de leis e regulamentos de proteção e zelasse pelo seu cumprimento.
Mais uma vez Ayres se voltou para o governo estadual com uma proposta de criação de uma nova entidade legal, uma reserva ambiental onde o homem e a biodiversidade pudessem coexistir. Em 1996, a assembléia legislativa classificou Mamirauá como uma "reserva de desenvolvimento sustentável" que conciliaria três objetivos: conservação da biodiversidade, uso de recursos naturais pelas comunidades locais e pesquisa.
Foi um passo ousado e inovador que ganhou o apoio de muitos órgãos nacionais e internacionais, incluindo o Fundo Nacional do Meio Ambiente, financiado pelo BID (ver quadro ao lado).
O bote de alumínio com fundo chato avançava deixando o braço principal do rio e se dirigindo para um canal secundário que levava ao prédio principal da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, com suas casas flutuantes, uma base de operações com dois andares para o pessoal e os cientistas visitantes.
Marise Reis se apoiou contra uma pilha de caixas cheias de farinha, açúcar, fruta e frangos começando a descongelar. Magra, descontraída e perfeitamente à vontade para entrar e sair de barcos, ela tinha deixado de lado por um tempo suas atividades de secretária na sede da reserva em Tefé para visitar os líderes da comunidade antes de um assembléia marcada para o mês seguinte. A assembléia seria um grande evento, a culminação de anos de reuniões, negociações com as autoridades governamentais, pesquisa e esforços incansáveis da equipe da reserva para elaborar um plano de gestão para Mamirauá que combinasse conservação da biodiversidade, uso sustentável dos recursos e atividades para melhorar as vidas dos habitantes locais. O plano, que foi depois aprovado quase em sua totalidade, já era familiar para o pessoal local, porque eles tinham sido consultados freqüentemente durante sua preparação.
Com sua abordagem baseada na comunidade, Mamirauá se destaca de outras tentativas passadas de proteger a biodiversidade na Amazônia, diz Reis. Em países desenvolvidos, o primeiro passo para criar parques e reservas é separar o homem da natureza, como a apartar uma briga entre dois contendores. Mas, no Amazonas, o custo de relocar ou impedir a entrada de pessoas, mesmo que fosse desejável, é proibitivo. Conseguir dinheiro para fazer com que se cumpram as regulamentações básicas já é muito difícil. E, ao contrário das pessoas nos países desenvolvidos, os residentes de Mamirauá precisam pescar, recolher madeira, coletar plantas e outros produtos da floresta para sobreviver.
Por todas essas razões, as coisas tinham que ser feitas de modo diferente em Mamirauá. "Quando vimos esta área e começamos a pensar em designar usos para as diferentes áreas, nunca perdemos de vista as necessidades de peixe e madeira da comunidade", diz Reis. Ela e outros coletaram dados amplos sobre a estrutura da população da área, padrões de migração para os centros urbanos e a partir deles, costumes de família, saúde e educação e atividades econômicas. Nesse período, Reis visitou as 60 comunidades da área para explicar os objetivos da reserva e saber a opinião das pessoas.
A tarefa mais importante foi guiar a comunidade na criação de um corpo representativo para assumir a liderança na hora de dar forma à reserva no futuro. No começo, eram realizadas duas assembléias gerais por ano. Três barcos levavam três dias visitando cada comunidade para apanhar os 100 delegados que se reuniriam durante três dias em Tefé ou outra localidade. Mais tarde, as assembléias foram reduzidas a uma por ano. "Ninguém agüentava se reunir tantas vezes, nem eles nem nós", conta Reis.
O plano elaborado com esforço em 1997 era ambicioso e sólido, baseando-se em regulamentações já existentes. Entre as cláusulas estavam o fechamento da área primária da reserva a barcos de pesca comercial dos centros urbanos e a classificação dos lagos num sistema de três níveis: proteção estrita, uso sustentado e manejo de espécies selecionadas. Impuseram-se restrições aos tipos de equipamento de pesca, estabeleceram-se regras para a caça de peixes-bois, tartarugas, pássaros e outros animais. Embora as comunidades locais ainda possam continuar a derrubar árvores, provisões especiais agora determinam quais as que podem ser cortadas, com que equipamento e quando.
O objetivo de longo prazo da reserva é pôr em funcionamento um sistema de zoneamento que protegerá totalmente certas áreas, deixará outras abertas a usos sustentáveis e designará ainda outras para objetivos específicos, como ecoturismo, manejo de tartarugas, peixes-bois e jacarés e habitat de pássaros.
Enquanto isso, cientistas do Brasil e do mundo inteiro continuarão a coletar dados sobre o ciclo de vida das espécies, dinâmica das populações, padrões migratórios e interação com outras espécies para dar aos planejadores a informação que eles necessitam para formular planos de gestão.
Reis reconhece que as novas medidas e regulamentações representarão uma perda a curto prazo para as comunidades. Mas esses custos serão parcialmente compensados por melhores serviços de saúde e saneamento e tratamento da água. O pessoal do projeto também ajudará os membros da comunidade a aperfeiçoar os métodos de processamento do peixe, comercializar peixes ornamentais, produzir mel, cultivar árbvores frutíferas e vender os produtos florestais. Há também planos encaminhados para abrir a área ao turismo de baixo impacto, o que proporcionaria emprego a guias, operadores turísticos e pessoal de hotelaria.
Apesar de um começo promissor, o futuro de Mamirauá como uma área onde o homem e a natureza possam coexistir é ainda incerto. A conservação só faz sentido ao longo do tempo e leva tempo para construir uma relação duradoura entre as pessoas e seu meio ambiente. "É muito difícil livrar-se de velhos hábitos", diz Reis. "Às vezes as pessoas pensam que se pode mudar tudo do dia para a noite, mas nós sabemos que isso não é verdade."