Em algum momento no ano 2000, a porcentagem de detidos que aguardam ilegalmente julgamento ou sentença nas prisões de El Salvador cairá para cerca de 50% do seu número atual.
Não haverá comemorações para marcar este acontecimento digno de registro. As condições das penitenciárias de El Salvador impedem autocongratulações, e é grande a preocupação da opinião pública com o nível elevado de crime violento no país.
Ainda assim, trata-se de uma conquista notável. Segundo Walter Aquino, chefe do departamento de presos não-condenados do sistema penitenciário de El Salvador, há sete anos atrás o país mantinha cerca de 12.000 presos em instalações projetadas para um máximo de 7.000. Em seu conjunto, 90% dos detidos de El Salvador estavam aguardando irregularmente a sentença, o que significa que tinham sido detidos sem julgamento por mais tempo do que a lei permitia pelos delitos que lhes eram imputados. Por quê? A resposta tendia a ser de cunho genérico: extravio de documentos, ausência de testemunhas, investigações mal conduzidas, falta de advogados de defesa ou simplesmente a chegada de um caso mais urgente à mesa do juiz.
Isto de forma nenhuma era incomum para um país latino-americano. Há muito, a porcentagem de presos sem condenação e um dos indicadores mais gráficos da ineficiência dos sistemas judiciais de toda a região. Em um estudo de 1998, o Human Rights Watch reportou que, em média, 70% de todos os presos da América Latina e do Caribe estão aguardando sentença. Com poucas exceções, a norma é a superpopulação carcerária.
O que está acontecendo em El Salvador? Resumidamente, a resposta é que em abril de 1998 a Assembléia Legislativa do país jogou fora o código de processo penal que estava em vigor desde 1860 e o substituiu por outro inteiramente novo. Os novos procedimentos, muito mais eficientes, estão permitindo que finalmente os tribunais comecem a limpar o acúmulo de casos pendentes. Milhares de detidos que não deviam estar na cadeia estão sendo libertados e os novos suspeitos estão sendo sentenciados ou libertados em média dentro de seis meses a partir da data de prisão.
Mas o que está acontecendo nas prisões é uma parte relativamente pequena da mudança muito mais profunda na maneira como a justiça é agora entendida e administrada em El Salvador. Os meios de acesso aos tribunais, o papel dos juízes e de outros funcionários do judiciário, a definição de crimes e a maneira como os julgamentos são realizados, tudo isso se transformou radicalmente nos últimos anos. Os recursos financeiros das instituições que compõem o sistema judicial, bem como o treinamento e a remuneração dos que nelas trabalham, foram dramaticamente melhorados.
Por que El Salvador esperou tanto tempo e só recentemente resolveu enfrentar esses problemas? Como os seus tribunais se tornaram tão impraticáveis? E por que as coisas estão melhorando agora? As respostas, que remontam à primeira metade do século 19, aplicam-se em certa medida a todos os países latino-americanos.
Uma herança ilustre. Com exceção das ex-colônias britânicas, praticamente todos os países da América Latina e do Caribe podem traçar as origens de seu sistema judicial à antiga Roma, onde os conceitos fundamentais do que hoje se conhece como tradição do direito civil foram articulados. (A Inglaterra e as suas ex-colônias usam o que se conhece como tradição do direito consuetudinário.) Em meados do século 19, quando as nações latinas recém-independentes estavam definindo seus sistemas legais, muitas delas se voltaram para o Código Napoleônico de 1804, que formalizara o direito civil romano em uma série de estatutos detalhados. O código foi traduzido para o espanhol pelo erudito venezuelano Andrés Bello e adotado como Código Civil do Chile em 1855. O Código Civil de El Salvador, adotado em 1860 e ainda parcialmente em vigor nos dias de hoje, baseou-se na tradução de Bello, da mesma maneira que os de muitos outros países latino-americanos.
Em sua forma vigente no século 19, o direito civil tinha inúmeras características distintivas. Os juízes não faziam jurisprudência, emitindo vereditos que passavam a ser seguidos como precedentes por outros juízes; em vez disso, esperava-se deles que simplesmente aplicassem os estatutos definidos pelos estudiosos do direito e aprovados pelos legisladores nacionais. Em muitos casos, os juízes em países de direito civil eram basicamente servidores públicos: começavam sua carreira em tribunais inferiores, logo depois de formados em direito, e gradualmente ascendiam todos os postos no sistema judicial. Nos casos criminais, cabia aos juízes o papel que se chamava de "inquisitorial", em que conduziam a investigação sobre o crime e emitiam um veredito. A função de defensores públicos e promotores era limitada ou não existia.
Finalmente, os processos judiciais nos países de direito civil se baseavam em um processo "escrito". Na prática, cada passo de um procedimento legal era executado por meio da redação e da apresentação de súmulas dos fatos a funcionários ou secretarias do tribunal, que em seguida os apresentavam ao juiz. Este examinava esses documentos e emitia pareceres ou decisões escritas, muitas vezes sem entrevistar pessoalmente as partes ou testemunhas do caso.
O poder órfão.Como outros sistemas legais, a tradição do direito civil evoluiu significativamente desde o século 19. Nos países do continente europeu, por exemplo, os sistemas de direito civil foram revisados e expandidos para refletir as modernas realidades legais, técnicas e sociais. Os procedimentos do direito civil também foram alterados para incorporar o aumento de eficiência requerido pelas economias industrializadas.
Na América Latina, porém, diversos fatores retardaram essa evolução. Em países com governos instáveis e autoritários, freqüentes intervenções militares e padrões arraigados de patronato político, o judiciário nunca teve a oportunidade de emergir como uma instituição forte e independente. Em vez de se constituir em um mecanismo de controle do Executivo e Legislativo, em muitos países o judiciário se tornou abertamente subserviente aos poderes políticos reinantes. Os governos interferiam abertamente na nomeação dos juízes da Suprema Corte, ou simplesmente substituíam a Corte inteira com designados mais maleáveis. As nomeações para os tribunais inferiores eram muitas vezes distribuídas como recompensas a seguidores políticos.
O baixo status do judiciário refletia-se na alocação dos recursos públicos. A remuneração miserável tornou-se norma para funcionários judiciais em muitos países e a falta de instalações e recursos dos tribunais impedia que os serviços judiciais pudessem acompanhar o ritmo da demanda. Quando esses fatores se combinavam com o sistema inerentemente obscuro de procedimentos escritos, o resultado era um sistema que criava incentivos para tráfico de influência e corrupção. As pessoas que não tinham como pagar propinas ou contratar advogados com boas relações não tinham na prática acesso à justiça. Mas, para aqueles que dispunham de poder político ou meios econômicos, o sistema podia de fato funcionar de forma bastante satisfatória. Este último fato era crucial, porque significava que as elites governantes não tinham motivo para se lançar em uma reforma judicial.
A guerra como catalisador.Coube a uma das guerras civis mais sangrentas da América Latina levar esses problemas ao ponto de ruptura em El Salvador. Em 1983, quando o país se encontrava ainda nos primeiros estágios de um conflito que seria responsável pela perda de cerca de 70.000 vidas, um pequeno grupo de advogados e estudiosos do direito começou a defender a posição de que estava na hora de o sistema judicial de El Salvador passar por uma revisão. O governo estabeleceu uma comissão para examinar o código civil e propor revisões. A nova Constituição adotada no mesmo ano de 1983 criou o Conselho Judicial Nacional para ajudar a preparar e selecionar juízes. Em 1990, o Presidente Alfredo Cristiani nomeou René Hernández Valiente ministro da Justiça e instou a que ele desse andamento à matéria. A equipe de Hernández não demorou a enviar à Assembléia propostas de novas leis para reger as questões penais, familiares, juvenis e processuais.
Apesar de o momento ser propício à mudança, o establishment judicial e legal de El Salvador demonstrou pouco entusiasmo em relação às propostas. Na verdade, talvez o movimento reformista jamais tivesse prosperado não fossem os acordos de paz entre o governo e a Frente Farabundo Martí de Liberación Nacional (FMLN) assinados em 1992. Na ocasião, todo o horror das violações dos direitos humanos cometidos durante a guerra surgiu frente à sociedade salvadorenha e a comunidade internacional. Em 1993, uma Comissão da Verdade independente, formada como parte dos acordos, publicou um relatório avaliando a responsabilidade pelos crimes de guerra. O relatório argumentava que, devido a seu fracasso em prevenir a impunidade, o sistema judicial de El Salvador compartilhava a responsabilidade pela tragédia da guerra. "El Salvador não dispõe de um sistema de administração de justiça que atenda aos requisitos mínimos de objetividade e imparcialidade, capazes de tornar a justiça confiável", concluíam os autores do relatório.
O relatório simplesmente fazia eco ao que milhões de salvadorenhos sabiam há anos. O sistema judicial estava falido. Para se recuperar da guerra e se tornar uma verdadeira democracia, El Salvador tinha que começar a colocar em ordem seus tribunais.