Roger Hamilton, Silva Jardim, Estado do Rio de Janeiro, Brasil
As 106 famílias do assentamento agrícola de Cambucaes, na região leste do estado do Rio de Janeiro, preocupam-se principalmente com sua própria sobrevivência e não com o destino de um macaquinho, por mais gracioso que ele seja ou por estar ameaçado de extinção.
Hoje, porém, muitas dessas famílias tornaram-se participantes ativas de um plano para salvar o mico-leão-dourado, uma das espécies mais ameaçadas do mundo. Além disso, uniram seus esforços aos de dois outros grupos com os quais não tinham antes praticamente nada em comum.
O primeiro grupo são os cientistas e conservacionistas da Associação Mico-leão-dourado, sediada numa grande reserva natural que faz divisa com um dos lados do assentamento. Na verdade, se pudessem, muitos dos assentados usariam de bom grado a reserva para caça e corte de madeira.
Uma faixa marca o 12o aniversário da invasão de uma grande fazenda por trabalhadores sem- terra.Esses agricultores identificam-se menos ainda com os grandes proprietários rurais da região, em sua maioria profissionais liberais ricos e membros do governo residentes no Rio de Janeiro (ver artigo “A mística do mico”). De fato, o próprio assentamento Cambucaes foi instalado em uma dessas grandes fazendas, como parte de um movimento nacional de trabalhadores sem-terra que tem sido freqüentemente marcado por intimidação e violência.
Esses estranhos parceiros uniram-se em torno de uma missão de conservação que, embora longe de estar ganha, vem provando que pessoas com interesses e pontos de vista radicalmente diferentes podem ser mobilizadas em favor da causa da proteção de um patrimônio natural valioso. No caso do mico-leão-dourado, o desafio é construir uma rede de segurança de fragmentos de floresta ligados por corredores de árvores, a maioria deles em terras particulares. Os micos-leões precisam desses corredores para se deslocar de uma área para outra e poder se relacionar, acasalar e criar um pool de genes viável que assegure a saúde e o sucesso reprodutivo das gerações futuras.
Problemas de comunicação. O assentamento de Cambucaes, localizado em uma das extremidades da trilha florestal planejada, é o elo que falta na cadeia de fragmentos e corredores de floresta (ver mapa). A associação teve de convencer os agricultores do assentamento a permitir que eles plantassem corredores em suas terras. Isso aconteceu sete anos atrás.
Esse relacionamento teve um mau começo. Parte do problema era a inexperiência da associação em lidar com as comunidades de pequenos agricultores.
Oliveira teve de conhecer as comunidades locais para convertê-las em aliadas cruciais na tarefa de salvação do macaco ameaçado.“Nós conhecíamos apenas os micos”, disse Paula Procópio de Oliveira, a diretora técnica da associação e coordenadora de um projeto financiado pelo Fundo Nacional do Meio Ambiente com a colaboração do Banco Interamericano de Desenvolvimento. “Nossa preocupação eram os micos-leões – sua ecologia, sua biologia, seu comportamento.”
E o povo local? “A princípio, eles não compreendiam o que estávamos fazendo”, contou Oliveira. “Quando entenderam, quiseram saber por que estávamos gastando tanto dinheiro com macacos se há tanta gente morrendo de fome.” (Ver link “Macacos x pessoas?”, à direita.) Além disso, eles se mostravam relutantes em experimentar algo novo. Agricultores costumam ser conservadores. E muitos daqueles, em particular, haviam trabalhado anteriormente em usinas de processamento de cana-de-açúcar ou provinham de áreas urbanas e, portanto, não tinham experiência com o trabalho no campo. Para completar, muitos acreditavam que a verdadeira intenção da associação era tirá-los daquelas terras. A comunidade dividiu-se em dois grupos, num clima de desconfiança mútua, um defendendo a cooperação e o outro opondo-se a ela.
Era evidente que a Associação Mico-leão-dourado teria de tentar algo diferente se quisesse conquistar o coração dos pequenos agricultores e ganhar acesso às suas terras. “Percebemos que não se podia entrar numa comunidade e dizer, ‘façam isso, não façam aquilo’, sem oferecer algo em troca”, explicou Oliveira.
Assim, a associação dedicou-se a aprender tudo o que fosse possível sobre os agricultores e seus problemas. Em repetidas visitas ao assentamento de Cambucaes, os técnicos ouviram os agricultores relatar como lutavam para extrair sua subsistência de uma terra pobre e improdutiva. A resposta da associação foi propor maneiras de melhorar a terra, estimular a produtividade e, ao mesmo tempo, proporcionar um hábitat para o mico-leão. “Trabalhamos como formigas”, recordou Oliveira.
No viveiro comunitário, Lessa (à direita) e Silva inspecionam árvores jovens que os micos-leões usarão para se alimentar e como abrigo.De olho no futuro. Agora, seus esforços estão sendo compensados. Prova disso é que Rosan Fernandes, funcionário da associação, passou a tarde plantando um novo corredor numa fazenda de 14 hectares cuja proprietária identificou-se como Dona Leda. Fernandes é especialista em agrossilvicultura, técnica de cultivo conjunto de árvores nativas, árvores frutíferas e outras culturas. Embora a prática da agrossilvicultura em suas variações tenha permitido o sustento de sociedades desde os primórdios da agricultura, no decorrer do tempo ela foi suplantada por técnicas aparentemente mais eficientes de monocultivo. Hoje, porém, a agrossilvicultura vem sendo redescoberta como forma tanto de aumentar a produção como de conservar o solo, os recursos hídricos e a biodiversidade.
A primeira parada foi o viveiro de árvores em Cambucaes. A associação fornece as sementes e a consultoria técnica, depois compra as mudas, planta-as e cuida da manutenção apropriada da nova floresta.
Fernandes foi recebido por Benedito Lessa, um homem cordial, visivelmente orgulhoso de seus canteiros de plantas. “Quando se planta uma árvore frutífera, não se colhe no dia seguinte”, disse ele. “É preciso chegar a um entendimento entre o presente e o futuro.”
Serão necessários três ou quatro anos para que as árvores frutíferas de Lessa comecem a produzir. Enquanto isso, ele cultiva plantas de produção anual, como mandioca, milho e hortaliças.
E como vão os negócios no viveiro? “Muitas pessoas em Cambucaes querem ter pelo menos um pedacinho de floresta”, disse Lessa. Por isso, as vendas são boas, ao menos durante a estação das chuvas, proporcionando uma bem-vinda complementação aos seus rendimentos. “Tudo ajuda”, comentou ele.
Fernandes carregou sua picape com um punhado de estacas e rumou para a fazenda de Dona Leda. Ali, apontou para um corredor distante que havia sido plantado nas terras de um grande proprietário e terminava numa pequena estrada. O corredor de Dona Leda, que teria de 35 a 50 metros de largura, estava projetado para avançar por cerca de 510 metros do outro lado da estrada. Os micos poderão atravessar a estrada porque as árvores selecionadas para ambos os lados da pista desenvolverão grandes copas entrelaçadas.
No total, o corredor de Dona Leda ocupará mais de 10% de sua fazenda, um trecho de terra desproporcionalmente grande se os micos fossem os únicos beneficiários. Mas, com a ajuda de Fernandes e o apoio da associação, ela ganhará dinheiro com as árvores frutíferas e os eucaliptos (para produção de madeira), abacaxizeiros, cafezais e outras culturas, todas plantadas junto com as árvores nativas. Ao mesmo tempo, a minifloresta estará protegendo as suas fontes de água.
Fernandes e Lessa planejam um corredor de floresta que um dia impedirá a visão da torre de comunicações.Como muitos pequenos fazendeiros, Dona Leda ouviu a idéia com ceticismo. Porém, quando Fernandes mostrou que a maior parte de suas terras estava em más condições – erodida, sem a camada superficial do solo e incapaz de manter mais do que uns poucos animais – ela teve de concordar. O argumento definitivo veio quando ela observou os bons resultados iniciais nas fazendas de alguns de seus vizinhos.
Fernandes compreendeu a hesitação inicial dela. “Investir uma grande parte de suas terras numa nova técnica poderia ser muito arriscado.” Mas ele está convencido de que Dona Leda tomou a decisão acertada. “A agrossilvicultura realmente aumentará sua produção”, disse ele.
Eusemiro Silva, que também passou a tarde plantando mudas com Fernandes e Lessa, já experimentou os benefícios da agrossilvicultura. Ele afirma que seus abacaxizeiros, plantados junto com árvores nativas, produzem mais do que os abacaxizeiros plantados sozinhos, porque as árvores vizinhas ajudam o solo a reter umidade.
“Não é teoria”, disse Silva. “Realmente funciona.” Fazendas vizinhas tiveram sucesso semelhante. “Cada espécie, tanto as nativas como as produtivas, ajuda as demais”, acrescentou.
A importância de manter contato. Ao fazer visitas freqüentes, conversar com os fazendeiros e manter suas promessas, a associação ganhou credibilidade em assentamentos como Cambucaes.
“Antes, tudo o que as pessoas daqui sabiam fazer era cortar a mata, pôr fogo e plantar”, disse Lessa.
Mas a associação lhes mostrou novas opções, desempenhando desse modo um papel normalmente reservado a agentes de extensão governamentais. Os extensionistas do governo, porém, só vêm aos assentamentos “quando a associação os traz aqui”, comentou Lessa. De modo similar, o Ibama, órgão de proteção ambiental, às vezes lhes envia convites para workshops, “mas só quando há algum problema que eles queiram nos contar”. As prefeituras locais oferecem alguma ajuda dentro de seus orçamentos limitados, no entanto a associação ainda arca com praticamente toda a assistência técnica que os fazendeiros recebem.
A associação vem até mesmo estendendo a sua atuação para além da agricultura e da agrossilvicultura. Está ajudando, por exemplo, grupos de mulheres a estabelecer negócios de venda de artesanato. Ocasionalmente, chega até a fazer o papel de intermediário honesto. Por exemplo, ela pode entrar em ação quando um assentamento tem algum problema com o órgão de reforma agrária brasileiro ou quando alguma questão precisa ser resolvida com uma prefeitura local.
Outra forma de cooperação da associação com as comunidades locais é oferecer empregos a seus membros, não só como operários, mas também como técnicos. Maria Inês S. Bento, filha de um assentado, trabalha para a associação como extensionista ambiental há mais de 10 anos.
“Eu mostro às pessoas como melhorar suas terras”, conta ela. “Para mim, a conservação deve estar ligada à produção. Isso é muito importante, porque não adianta nada para os agricultores conservar se eles não puderem também produzir.”
Mas embora a associação e seus colaboradores tenham feito muito progresso em poucos anos, um futuro seguro para os micos-leões-dourados ainda está longe de ser algo garantido, disse Oliveira. “As pessoas continuam caçando e cortando árvores. Os fragmentos ficaram menores, mesmo enquanto trabalhamos para construir corredores entre eles. E ainda há muitos fogões a carvão”, prosseguiu. “Estamos lidando com uma dupla realidade.”
Ela se sente otimista quanto à possibilidade de salvação do mico-leão-dourado? “Às vezes sim, e às vezes não”, foi sua resposta.