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Duas famílias, dois futuros

Os Altamira são ricos. Moram em um luxuoso apartamento de oito quartos em um bairro exclusivo de uma grande cidade da América Latina.
Os Bajares são pobres. Moram em um barraco na encosta do morro, onde não há luz elétrica nem água potável e onde as ruas não são pavimentadas.

Todos os que cresceram em algum país latino-americano ou caribenho estão acostumados com essas duas famílias fictícias. E sabem que a diferença entre as suas rendas - e em suas perspectivas em geral - é enorme. Após décadas de estudo sobre o assunto, as pessoas não se surpreendem mais quando ouvem que a região tem a pior desigualdade de renda do mundo.

A desigualdade é tão ubíqua que se pode até mesmo ceder à tentação de não levá-la em consideração por se tratar de um problema óbvio com soluções óbvias. Muitos pressupõem que a desigualdade é um reflexo do subdesenvolvimento e que a única maneira de reduzir o hiato entre ricos e pobres é melhorar as condições sociais e econômicas do país.

Mas será que o problema é tão simples assim? Entendemos realmente as origens da desigualdade e como ela se perpetuou? A edição do relatório de 1998-99 do relatório do BID sobre o progresso econômico e social da região, Facing Up to Inequality in Latin America, representa um esforço sem precedentes para responder a essas questões. Os pesquisadores do BID analisaram respostas a perguntas sobre renda, educação, idade, profissão e outros fatores que foram coletadas de milhares de famílias entre 1994 e 1996. As pesquisas abrangeram 14 países que respondem por mais de 80% da população da região.

Ao processar os dados das pesquisas, os pesquisadores conseguiram montar um quadro incomumente detalhado das famílias típicas em cada nível do espectro da renda. A imagem que emergiu dos Altamira e dos Bajares, usados como compósitos para representar as características das famílias que se encontram entre os 10% mais abastados e os 30% mais pobres da região, desafia muitos estereótipos populares. Na verdade, ela mostra que o entendimento da desigualdade requer uma análise muito mais profunda da confluência de fatores econômicos e institucionais, decisões pessoais, influências culturais e funções de gênero.

Fora de proporção.

De acordo com o relatório do BID, os países latino-americanos e caribenhos são muito mais desiguais dos que os países de outras regiões do mundo. Cerca de 150 milhões de latino-americanos, ou 33% da população da região, vivem com menos de US$2 por dia, valor que se supõe ser insuficiente para atender as necessidades mínimas de subsistência. Se a distribuição da renda na região fosse a mesma da média internacional, reduzindo assim a desigualdade, a pobreza na América Latina e no Caribe seria a metade do que é hoje. Se a renda na região fosse distribuída como no Sudeste asiático, apenas um quinto dos latino-americanos viveria com menos de US$2 por dia.

Na verdade, a América Latina tem o que os economistas chamam de "excesso" de desigualdade: disparidades que são bem piores do que deveriam ser, considerando-se o nível global de desenvolvimento da região. O abismo entre os Altamira e os Bajares mostra isso claramente. De acordo com o relatório do BID, os Altamira e os seus pares entre os 10% mais ricos detêm 40% da renda da região, enquanto os Bajares e os seus vizinhos nos 30% inferiores ganham apenas 7,5% do total. Visto por um outro ângulo, a renda familiar per capita dos Altamira é 20 vezes a dos Bajares. Além disso, os pesquisadores do BID advertem que a disparidade é provavelmente ainda maior, uma vez que as pesquisas de unidades domiciliares medem apenas a renda do trabalho e não a do capital (como propriedades alugadas, investimentos, etc.), que constitui uma importante fonte de dinheiro para os 10% superiores.

Por que essas defasagens são tão grandes e desproporcionais? Os autores do relatório do BID argumentam que a explicação está na confluência de fatores macroeconômicos, demográficos, educacionais e geográficos. Mas também mostram que partes significativas da resposta podem ser encontradas em quatro variáveis fundamentais das vidas de famílias como os Altamira e os Bajares: a taxa de fertilidade, o local de residência, a educação e o emprego.

Quem são os ricos?
Um estereótipo comum sobre a riqueza na América Latina sustenta que todos os países são dominados por um grupo elitista de clãs grandes e extremamente ricos que controlam vastas extensões de terra e as indústrias básicas. Na visão estereotipada dessas famílias, os homens têm a incumbência de gerar a renda familiar e administrar os bens e as mulheres a de se devotar à família e às funções sociais.

Não resta dúvida de que este tipo de família existe, mas os Altamira e outros como eles não se encaixam nessa descrição. Ao contrário das grandes famílias abastadas do passado, os 10% mais ricos têm uma média de apenas 1,4 filho. Em Honduras, onde as famílias abastadas são maiores do que em outros países, as famílias ricas têm em média menos de 2 filhos abaixo dos 18 anos. No Uruguai e na Argentina, uma de cada duas famílias dos 10% mais ricos não tem filhos pequenos. Em outras palavras, em sociedades ainda predominantemente católicas, as famílias que poderiam ter mais filhos estão optando por ter menos.

Os Bajares, por outro lado, têm três filhos, que é a média por família entre os 30% mais pobres. Isso representa uma notável melhoria em relação ao início dos anos 60, quando as mulheres latino-americanas tinham em média seis filhos, mas mostra que a fertilidade mais alta continua concentrada entre os pobres. As famílias dos 30% mais pobres são maiores provavelmente porque também incluem mais adultos dependentes (como avós ou tios). Em geral, as famílias dos 10% mais ricos têm em média menos de quatro membros, enquanto as dos 30% do patamar inferior apresentam a média de 6,3 membros. Assim, a renda per capita é mais alta na casa dos Altamira não apenas porque os seus membros ganham mais, mas também porque têm menos bocas para alimentar.

Como no resto do mundo, as perspectivas dessas duas famílias são determinadas pelo local onde moram. Apesar do propalado crescimento das cidades da América Latina, a maioria das pessoas mais pobres da região ainda vive no campo. Somente no Brasil, no Chile e na Venezuela, mais da metade das famílias dos 30% mais pobres vive em áreas urbanas. Em quase todos os países, nove entre dez famílias dos dois decis mais altos de renda (isto é, os dois segmentos mais altos de 10%) vivem na cidade. Como o trabalho que proporciona renda tende a ser mais escasso nas regiões rurais pobres, é bem menos provável que pessoas como os Bajares emerjam da pobreza enquanto moram no campo.

Os Altamira e os Bajares também diferem fundamentalmente quando se trata de educação. O Sr. Altamira estudou durante 12 anos, um pouco abaixo da média de seus pares, enquanto o Sr. Bajares tem apenas quatro anos de escolaridade. Talvez mais significato ainda seja o fato de que a Sra. Altamira e as mulheres da sua faixa de renda estudaram em média 11,6 anos, contra apenas 4,7 da Sra. Bajares e das outras mulheres dos 30% mais pobres. A educação separa os Altamira até mesmo dos que estão no segundo decil mais alto do espectro da renda: em média, as pessoas nos 10% mais altos têm 2,7 anos mais de escolaridade do que as do decil seguinte. No México, no Brasil e na Costa Rica, o hiato é de mais de três anos. Dessa forma, mesmo sem ter freqüentado a universidade, os Altamira se situam muito acima do resto da sociedade em matéria de educação, pelo simples motivo de que a maioria das pessoas da região têm escolaridade muito menor.

O Sr. Altamira e o Sr. Bajares são semelhantes quanto à participação na força de trabalho formal (85,8% e 82,5% respectivamente). Mas, enquanto os chefes de família dos 10% superiores trabalham como profissionais liberais, ocupando cargos técnicos ou como executivos de alto nível de corporações, apenas uma minúscula fração dos trabalhadores dos 30% inferiores alcança posições de liderança ou assume responsabilidades técnicas no trabalho. Como resultado, o Sr. Altamira ganha 3,5 vezes mais do que o Sr. Bajares.

Devido à renda considerável do marido, a Sra. Altamira pode até se dar ao luxo de ficar fora da força de trabalho. Todavia, uma das mais inesperadas descobertas das pesquisas de unidades domiciliares do BID foi que, na verdade, a maioria das mulheres (60%) do decil superior de renda participa da força de trabalho (o que significa que estão empregadas ou procurando emprego). Por contraste, apenas 36,7% das mulheres no segmento de renda da Sra. Bajares o fazem e a maioria delas trabalha no setor informal, onde o pagamento é muito mais baixo.

O trabalho da mulher.
De acordo com o relatório do BID, essa diferença de participação no mercado de trabalho e de ganho potencial de renda acaba se revelando uma das contribuições mais significativas para a desigualdade na região.

Por que é bem menor a probabilidade de que as mulheres pobres integrem a força de trabalho? São inúmeros os fatores, mas a educação é talvez o mais evidente. Enquanto que os homens, mesmo com muito pouco estudo, tendem a participar da força de trabalho, com as mulheres acontece exatamente o oposto: somente 40% das mulheres com quatro anos ou menos de escolaridade estão no mercado de trabalho, comparados com 78% das que têm um nível mais alto de educação. A escolha da mulher entre trabalhar ou não é determinada também pelo salário que o marido ganha, pelo número de filhos que tem para cuidar e, nas sociedades tradicionais, pela produtividade do serviço doméstico. Os Bajares não têm luz elétrica, gás ou água corrente em casa e moram longe do transporte público. Como conseqüência, a Sra. Bajares gasta muito mais horas por dia nas tarefas domésticas básicas do que a Sra. Altamira, cuja casa é equipada com todos os eletrodomésticos. (A Sra. Altamira também pode se dar ao luxo de contratar uma empregada doméstica.) Mesmo que conseguisse encontrar alguém para cuidar de seus filhos e ajudá-la no trabalho doméstico, dificilmente valeria a pena para a Sra. Bajares deslocar-se para trabalhar na cidade mais próxima, uma vez que os salários pagos a pessoas com a sua formação são muito baixos. Daí resulta que apenas 7,5% das mulheres do grupo de renda da Sra. Bajares têm empregos no setor formal, contra 33,5% das mulheres nos 10% mais altos.

A tragédia real deste ciclo pernicioso de oportunidades perdidas é que ele perpetua a desigualdade. Considere-se um cenário diferente. Se tivesse completado mais alguns anos de escola quando era jovem, a Sra. Bajares teria um incentivo maior para participar da força de trabalho, dada a perspectiva de um salário razoável. Uma vez empregada, provavelmente ela também se preocuparia em ter menos filhos para melhorar as suas chances de manter o emprego. A renda combinada dos Bajares poderia dar-lhes condições de se mudar para um bairro com serviços de eletricidade, água e esgotos, e comprar um fogão, uma geladeira, uma máquina de lavar roupa e outros eletrodomésticos. Essas facilidades tornariam o trabalho doméstico mais produtivo, dando à Sra Bajares tempo suficiente para manter um emprego enquanto as crianças estivessem na escola.

Finalmente, todas essas mudanças poderiam ter dado à família dos Bajares mais confiança no que os economistas chamam de "taxa de retorno da educação". Em outras palavras, os Bajares poderiam concluir que trabalhar para manter os filhos na escola vale a perda de força de trabalho no curto prazo, porque o potencial de ganho maior no longo prazo acabaria beneficiando a família inteira. As pesquisas de unidades domiciliares do BID concluíram, como o fizeram outros estudos, que os filhos de mães que trabalham tendem a alcançar níveis mais altos de escolaridade do que os de mães que não trabalham e que os pais com mais escolaridade e oportunidades de ganho de renda tendem a ter menos filhos e a canalizar mais recursos para a educação dos mesmos.

O desafio das políticas.
Podem os governos estimular este círculo virtuoso de educação, participação na força de trabalho e famílias menores com vistas à redução da desigualdade? Conquanto os fatores que influenciam as escolhas e opções de uma família sejam numerosos e complexos, os autores do relatório do BID acreditam que políticas apropriadas podem ajudar.

Primeiramente, toda política que contribui para aumentar a educação das mulheres tende a aumentar os seus ganhos potenciais no mercado de trabalho e a levar mais mulheres a buscar trabalho remunerado, uma vez que as vantagens assim obtidas tendem a crescer em relação à vantagem de trabalhar primariamente em casa. Na prática, isso significa a abertura de escolas em locais acessíveis às famílias de baixa renda. Significa também a melhoria da qualidade da educação: com muita freqüência a instrução é tão fraca que as pessoas percebem que, a longo prazo, a permanência na escola não faz a menor diferença para as perspectivas de trabalho de seus filhos. Há muito se debate como reformar os sistemas educacionais para melhorar a qualidade do ensino, mas um número cada vez maior de especialistas concorda em que um primeiro passo é a descentralização dos sistemas escolares, para que as escolas locais tenham maior liberdade no sentido de inovar e se sintam mais responsáveis perante as famílias que as utilizam. Outra abordagem promissora envolve a criação de incentivos para mestres e alunos. Os aumentos de salário para professores podem estar ligados a avaliações de desempenho que incluam as opiniões dos pais; as famílias podem ser motivadas a manter os filhos na escola por meio de programas de merenda, livros grátis e outros serviços.

Em segundo lugar, antes de considerar a possibilidade de integrar a força de trabalho, as mulheres pobres precisam aumentar a produtividade de suas tarefas domésticas. Políticas que ampliem o abastecimento de água corrente, proporcionem luz elétrica e serviços comunitários podem ter um impacto imediato sob este aspecto. Para mulheres com crianças pequenas, a disponibilidade de creches de baixo custo durante as horas de trabalho é fundamental para a decisão entre procurar emprego ou permanecer em casa. De acordo com o relatório do BID, estudos no Brasil e em outros países mostraram que o aumento da oferta de creches a preços acessíveis leva a uma maior participação da mulher na força de trabalho.

Os governos podem ainda emendar as leis que indiretamente desestimulam o emprego das mulheres. Em muitos países latino-americanos e caribenhos, as leis trabalhistas obrigam os empregadores - em vez do governo - a pagar pela licença-maternidade. Para evitar essa despesa considerável, muitas empresas simplesmente preferem não contratar mulheres para cargos importantes e mais bem remunerados. Isso tende a encorajar a segregação da mão-de-obra que relega as mulheres a empregos comparativamente serviçais e de baixa qualificação. Em muitos países, as leis trabalhistas também restringem o uso dos contratos de curto prazo ou de tempo parcial - duas categorias que podem ser atraentes para mulheres com filhos pequenos. Até mesmo as leis que estabelecem salários mínimos muito altos podem conspirar contra o emprego das mulheres, pois forçam muitas empresas a confiar em acordos informais de trabalho que oferecem salários extremamente baixos e nenhuma proteção no emprego.

Janela de oportunidade.
É claro que a mudança dessas políticas pode ser difícil e cara do ponto de vista político. Mas, se continuarem as atuais tendências de fertilidade, muitos governos da região poderão aproveitar a "janela demográfica de oportunidade", que lhes permitirá melhorar a capacidade de financiar esses esforços. Nas duas próximas décadas, os que nasceram nos anos de maior fertilidade das décadas de 60 e 70 inflarão a população da região em idade de trabalhar, ao mesmo tempo em que o número de crianças diminui e o número de aposentados permanece estável. Simplificando, isso significa que mais mulheres estarão prestes a entrar na força de trabalho - desde que políticas econômicas e de comércio favoreçam a geração de empregos. Significa também que os governos terão mais dinheiro para gastar com a melhoria da educação e outros serviços sociais, uma vez que os custos sociais do cuidado das crianças e dos aposentados serão temporariamente mais baixos e haverá mais trabalhadores pagando impostos. Quando, daqui a 20 anos, essa grande população economicamente ativa começar a se aposentar, os custos dos serviços sociais voltados para as pessoas de 60 anos ou mais alcançarão um nível mais típico e a "janela" se fechará.

Além disso, existem razões econômicas convincentes para que os governos dêem prioridade a despesas com serviços que podem diminuir a desigualdade. Os economistas clássicos tradicionalmente sustentam que a desigualdade é um mal necessário. Eles defendem a teoria de que a acumulação de capital necessária para o crescimento econômico só pode provir da poupança dos membros mais ricos da sociedade, posto que os trabalhadores sempre tenderão a consumir tudo o que ganham. Também argumentam que todos os esforços para a redistribuição da riqueza por meio de políticas sociais podem ter o efeito oposto ao desejado, reduzindo a produtividade e a eficiência econômica.

Mas na última década os economistas e os formuladores de políticas públicas começaram a questionar esses pressupostos à luz de novos indícios que mostram que a desigualdade pode retardar a acumulação do capital humano e físico de uma sociedade. Os países com escassez crônica de mão-de-obra qualificada e bem-treinada não conseguem aumentar a produtividade no mesmo ritmo de seus concorrentes mais igualitários. As sociedades muitos desiguais também estão sujeitas a conflitos sociais e políticos, que solapam a estabilidade e em última instância impedem o crescimento econômico.

De qualquer forma, as mudanças nas correntes da teoria econômica significam muito pouco para os Bajares. Eles acolheriam de bom grado todo esforço no sentido de diminuir o abismo entre as suas perspectivas de uma vida melhor e as dos Altamira.
 

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