Os índices de crescimento da América Latina estão em ascensão, a educação e a saúde vêm melhorando, as exportações estão aumentando, as instituições, tornando-se mais democráticas - mas os indicadores de pobreza e desigualdade ainda se recusam a sair do lugar.
Wanda Engel Aduan, chefe da Divisão de Programas Sociais do Departamento de Desenvolvimento Sustentável do BID, compreende bem esse aspecto trágico da sociedade latino-americana. "Eu nasci no Brasil, o país mais desigual do mundo, numa família muito pobre", explica ela. Sendo professora, Engel vê a educação como a melhor forma de esperança para vencer a desigualdade na região e também como um meio de preparar as pessoas para atuar na vida, na política e nas relações pessoais e institucionais. Ela conversou recentemente com a BIDAmérica sobre os objetivos de uma série de seminários que organizou para a Semana de Desenvolvimento Social do Banco, no final de outubro de 2005.
BIDAmérica: Como especialista em questões sociais na América Latina e com considerável experiência profissional na área, primeiro no Brasil, como Secretária de Desenvolvimento Social na equipe do presidente Fernando Henrique Cardoso, e agora como Chefe de Programas Sociais do BID, por que, em sua opinião, é tão difícil reduzir ou eliminar a desigualdade e a pobreza?
Engel: Durante um longo tempo, o enfoque foi essencialmente econômico, centrando-se na relação entre as pessoas e a produção. Achava-se que estimular a produção, a riqueza e o crescimento econômico seria a solução para tudo. Percebeu-se depois, porém, que as questões humanas também eram importantes. Esse foi o início de projetos voltados apara a reforma da educação e da saúde, mas sempre com um enfoque no aumento da capacidade das pessoas de produzir.
A dinâmica da desigualdade, no entanto, segue em outra direção, cujas origens estão no sistema de distribuição de riqueza de cada país. No sistema atual, os ricos ficam mais ricos, enquanto os pobres recebem um pouco e os muito pobres não recebem nada. Embora alguns estudos mostrem que o crescimento de fato melhora os índices de pobreza, a única maneira de eliminar a pobreza extrema é alterar o sistema de distribuição da riqueza.
BIDAmérica: Em alguns países, como os europeus, a adoção de sistemas de distribuição mais justos e eqüitativos foi imposta por consenso social, revolucionário ou não. Como a América Latina pode lidar com esse tipo de mudança no sistema de distribuição sem o apoio de um consenso social sério? O que poderia acontecer se nenhum acordo dessa natureza fosse alcançado?
Engel: A era da informação e da globalização atual possibilitou que até mesmo os mais pobres se conscientizassem de seus direitos e da importância da igualdade. Isso produz uma dissonância tremenda entre o ideal que todos proclamam e a profunda desigualdade em que vive boa parte da sociedade. Esse problema se amplifica nos centros urbanos, onde a riqueza e a pobreza convivem cotidianamente. De alguma forma, esse fenômeno desencadeia crises sociais incríveis, crises de violência e marginalidade. Quando jovens morrem de forma violenta, isso representa uma grande perda para um país.
Esse sistema de desigualdade baseia-se na “construção social”; é uma questão social, cultural e institucional. Precisamos de uma sociedade mais solidária. O problema é: como aumentar os impostos para os membros mais ricos da sociedade, se eles são as pessoas que detêm o poder econômico e político, além de controlar os meios de comunicação? Se as pessoas que controlam cerca de 46% da receita total de uma região estão pagando meros 10% dos impostos e não concordam que todos devem contribuir para o bem comum, as coisas estarão muito ruins para todos nós.
É preciso fazer um apelo à responsabilidade individual, no pagamento dos impostos e participação em trabalhos voluntários. Temos de convencer as pessoas de que ajudar a levantar o país beneficiará tanto os cidadãos mais pobres como aqueles que estão pagando mais. Beneficiará a todos. Muitos governos da América Latina e de outros lugares compreendem que esse tipo de desigualdade social tem repercussões negativas para a economia e freia o desenvolvimento.
BIDAmérica: Quais são as opções neste ponto?
Engel: Precisamos identificar políticas que, de algum modo, tentem reduzir a desigualdade e analisar seus componentes em termos culturais, ou que examinem as instituições políticas em detalhe. A idéia da Semana de Desenvolvimento Social que organizamos aqui na sede do BID no ano passado foi explorar maneiras de criar um desenvolvimento social – além do desenvolvimento humano e econômico – capaz de permitir que as sociedades se tornem mais solidárias, olhando para cada um de seus membros. Tudo isso seria combinado com uma governança justa, transparente e capaz de criar as condições favoráveis para um novo comprometimento com a mudança da lógica do sistema de distribuição de riqueza atual.
BIDAmérica: Há alguma experiência atualmente na região que poderia levar a mudanças positivas na área da desigualdade?
Engel: As transferências condicionais de renda são uma das políticas de distribuição mais interessantes e importantes que estão sendo usadas hoje, porque protegem a população do país de choques econômicos e financeiros ao mesmo tempo que garantem um mínimo de segurança.
O programa Oportunidades no México ou o Bolsa Família no Brasil, além de muitos outros, combinam proteção social com apoio a aspectos humanos. No entanto, dar dinheiro não é suficiente. É preciso acompanhar as famílias durante o processo. O Chile Solidario é o programa mais abrangente nesse aspecto. Os educadores sociais visitam as famílias e trabalham com elas para criar um plano de desenvolvimento familiar que garanta que todos os membros da família tenham acesso a programas de capacitação profissional e desenvolvimento econômico. Essa experiência parece estar mostrando que é possível sair da situação de pobreza extrema.
O mito de que existe um tipo de pobreza estrutural – a pobreza extrema – que nunca desaparecerá é o que alimenta a convicção de que é melhor investir naqueles que não são tão pobres, porque é possível fazê-los progredir mais rapidamente e com menos esforço. Mas esses programas mostram que não devemos desistir.
BIDAmérica: Como o BID pode incentivar essas mudanças? Ou ele já as está incentivando?
Engel: Em primeiro lugar, o Banco está realizando estudos que vão além das questões econômicas, mas que são feitos por economistas, usando uma metodologia que todos consideram convincente. Isso é importante. O Banco criou instrumentos que promovem programas abrangentes, com metas definidas, enfatizando impacto e resultados em vez de apoiar um setor específico, como saúde ou educação. A tendência é enfrentar os problemas da maneira mais abrangente e multidimensional.
O Banco também está ajudando a modernizar instituições para torná-las fortes e confiáveis, porque as instituições da região ainda são muito frágeis. Os partidos políticos não têm plataformas reais, por exemplo; eles tendem a ser compostos de grupos de amigos que compartilham interesses comuns. A idéia de um programa de governo fica em segundo plano.
BIDAmérica: A senhora está otimista ou pessimista em relação ao futuro?
Engel: Estamos num estágio propício ao crescimento econômico, a investimentos estrangeiros e ao progresso institucional; temos governos democráticos e eleições livres. Precisamos acreditar que o consenso social será possível no futuro. Temos exemplos de consenso social em questões específicas, o que pode ser um bom começo. O Chile chegou a um consenso pós-Pinochet.
Nossos países foram divididos por uma falta geral de conscientização. No mundo globalizado de hoje, porém, as pessoas estão percebendo que trabalhar para o bem comum beneficia a todos nós e tem um efeito positivo sobre a economia.