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De quem depende o futuro dos pescadores?

Cada vez que um celular toca, o dono se vira discretamente, evitando os outros homens sentados em torno da sala, para cuidar de algum assunto particular.

É uma reunião de representantes de uma associação de empresas de processamento de pescado e donos de barcos pesqueiros em Puerto Cabezas, na Costa Atlântica da Nicarágua. São os manda-chuvas da economia municipal, homens que dirigem possantes utilitários desportivos e levam molhos de chaves pendurados no cinto. São eles que despacham frotas de barcos de aço em busca de lagosta, camarão e peixe e vendem o produto em mercados distantes nos Estados Unidos e na Europa.

Apesar de sua posição privilegiada, apresentam uma lista de queixas: os bancos lhes negam crédito, os preços da gasolina sobem toda segunda-feira e as frotas estrangeiras, formadas por barcos maiores e mais bem aparelhados, estão dizimando os cardumes.

A grande preocupação é o destino da população de lagostas e os pescadores apelam para que o governo faça alguma coisa a esse respeito. Contrariando a imagem preconcebida do pescador como um individualista impenitente, que se arrepia ao menor sinal de intervenção do governo, esses empresários querem mais regulamentos e mais fiscalização.

"Em Honduras a pesca já é predatória e a mesma coisa vai acontecer aqui se não fizermos alguma coisa", prevê Gustavo Merina, presidente da associação. "Se a pesca piorar, todo mundo vai sofrer, até os motoristas de táxi e os lojistas."

Para evitar que o estoque de lagosta seja destruído, a associação quer instituir uma temporada de proibição da pesca. Argumenta que nos últimos anos seus membros só conseguiram manter a produção aumentando enormemente o esforço de pesca. Quer proibir também a captura de lagosta na época da desova e limitar o número de armadilhas e mergulhadores por barco.

Mas mesmo que se aprovem essas normas não será possível aplicá-las, como reconhecem os representantes da associação. Em Puerto Cabezas, o Ministério do Meio Ambiente só emprega um único inspetor "contra todo mundo", nas palavras de um dos presentes. Qualquer regulamento futuro teria de ser complementado por um corpo bem treinado de fiscais com barcos rápidos – e, se necessário, pela polícia.

De mal a pior. Se os homens mais poderosos da indústria pesqueira estão se queixando, que dizer dos mais fracos?

Do outro lado da cidade, está para começar outra reunião. Lá, um grupo de homens rijos, camisas bem passadas sobre a pele curtida pelo sol, vários deles com muletas, assinam o nome no livro de registro e vão se sentar em bancos sem pintura.

São representantes de um sindicato com 660 mergulhadores – aqueles que sobem em barcos ferrugentos que demandam os distantes recifes oceânicos em busca de lagosta. Vivem a bordo, apertados entre pilhas de canoas e equipamento de mergulho. Ao chegar a um recife, entram nas canoas, remam até os pontos onde se acredita haver lagostas e ali mergulham em busca de sua presa. Ganham por quilo capturado. Trabalham às vezes 12 horas por dia, arriscam-se muito e ganham pouco. (Para mais informações sobre os riscos do mergulho, clique no artigo à direita "Como salvar as lagostas?")

Todos os sócios do sindicato e quase todos os mergulhadores da Costa Atlântica da Nicarágua são índios misquitos. Um funcionário do sindicado declara: "Os direitos indígenas e os direitos pesqueiros são a mesma coisa, porque os pescadoras são indígenas". Os participantes da reunião falam espanhol, embora hesitantes. "Antes de falar em espanhol, eu penso em misquito", explica um deles.

É longa a lista de queixas: preços baixos para a lagosta, falta de crédito, recusa de licença para operar barcos maiores (o que lhes permitiria libertar-se das grandes empresas), escassez de lagosta, problemas de saúde e falta de informação. Ao contrário das grandes empresas, os mergulhadores não têm acesso à Internet para saber os últimos preços da lagosta e dos suprimentos; e mesmo que tivessem computadores não poderiam usá-los, porque o fornecimento de energia elétrica é instável demais.

Muitos dos problemas dos mergulhadores decorrem de uma administração pública ineficaz. Falta às autoridades recursos e treinamento para manter a infra-estrutura, aplicar os regulamentos sanitários e ocupacionais e criar novas oportunidades econômicas. Tampouco elas conseguem estabelecer um diálogo com os grupos locais, como o sindicato dos mergulhadores, e ouvir o que têm a dizer sobre as prioridades e o esboço de novos programas.

Uma nova iniciativa financiada pelo BID para fortalecer o governo regional ao longo da Costa Atlântica da Nicarágua (ver link à direita) contribuirá para dar às autoridades públicas os meios e aptidões para trabalhar com a população local. Embora os líderes do sindicato dos mergulhadores já tenham ouvido muitas promessas no passado, eles manifestaram uma cautelosa esperança em relação ao novo programa. Estão na faixa mais pobre da população, de modo que nada têm a perder.

Acima de tudo, precisam de ajuda para concorrer com as grandes empresas pesqueiras em condições mais eqüitativas. "Essas empresas enriqueceram às nossas custas", acusou Alfredo Albarado, presidente do sindicato. "Não reconhecem nossos direitos. Somos seus escravos."

O sindicato já apresentou às grandes empresas uma lista de 26 reivindicações que deseja discutir. Albarado mostrou uma cópia, datilografada em uma máquina de escrever evidentemente antiga. As reivindicações compõem um retrato sombrio de uma profissão perigosa. Entre as questões levantadas estão o excesso de carga nos barcos (o ano passado dois barcos afundaram e muitos mergulhadores se afogaram); suprimentos médicos insuficientes a bordo; má alimentação; trabalho em profundidades excessivas; equipamento de mergulho deficiente; preços baixos; e falta de respeito.

E, finalmente, uma reivindicação pungente. "Quando um mergulhador se perder em alto mar, exigir que o capitão o procure até encontrá-lo."

Dos 26 pontos apresentados, as grandes empresas só concordaram em discutir cinco. Entre eles estava a prática de descontar 5% do peso das lagostas para compensar a água do mar que trariam consigo. "Isto não é correto", disse Elvis Dublón, funcionário do sindicato. "Não se justifica cientificamente."

Alguém levanta a questão dos riscos do mergulho para a saúde. "Eu, por exemplo, estou paralisado da cintura para baixo", diz um homem. "Eu também", ecoou outro. Num grupo de 12 pessoas, quatro não podem andar sem ajuda.

Aos 30 anos de idade, quase todos os mergulhadores da área tinham mudado de atividade ou, o que é mais provável, ficado aleijados ou morrido. Não há mergulhadores idosos. "Somos descartáveis", comentou outro funcionário do sindicato. "Quando o mergulhador não pode mais trabalhar, as empresas arranjam outro." E as empresas também não se responsabilizam pelos deficientes, afirmou. Quando o mergulhador é atacado pelo mal-dos-mergulhadores, a empresa paga o uso da câmara de descompressão e 20 ou 30 dias de trabalho – nada mais. "São incapazes de comprar uma cadeira de rodas, ou compram uma cadeira em mau estado."

Quantos mergulhadores paralíticos existem? Centenas, foi a resposta. Homens de muletas ou em cadeiras de rodas, que passam desapercebidos em casa e até nos parques, sem condições de sustentar suas famílias. Para muitos pode ser tarde demais, mas para os outros, um novo regime baseado em leis efetivas, administração sólida e participação local ainda pode fazer muita diferença.

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