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Além da biofilia

Roger Hamilton, Puerto Villamil, Galápagos

Um dos biólogos mais reconhecidos do mundo teorizou que as pessoas têm uma afinidade natural pela vida e uma reverência pelas coisas vivas. Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard, chama essa afinidade de “biofilia”.

Mas para os pescadores das ilhas Galápagos a biofilia ocupa um lugar secundário em relação a preocupações mais práticas, como pagar as contas. Eles não são diferentes das pessoas pobres de qualquer outro lugar do mundo, para quem a idéia aparentemente esotérica de proteger a natureza entra em conflito direto com a necessidade de extrair o sustento de qualquer fonte natural que esteja disponível.

Em Galápagos, pagar as contas traduz-se na reivindicação de manter a pesca – os conservacionistas e cientistas falariam em pesca predatória – de espécies de alto valor, porém cada vez mais raras, como o pepino-do-mar. Quando suas reivindicações são negadas, aflora o ressentimento. Pelo menos entre os militantes mais ativos, o ressentimento extravasa periodicamente em greves e mesmo em atos de violência.

Um representante do setor pesqueiro integra a Junta de Gestão Participativa da Reserva, que é encarregada de criar um plano de gestão para a Reserva Marinha de Galápagos como parte de um programa financiado pelo BID. Os outros membros são cientistas, administradores do parque e líderes de grupos conservacionistas e de turismo.

Para esses membros conservacionistas da comunidade de Galápagos, as expressões de biofilia são mais naturais. Instruídos, politicamente engajados, viajados, articulados e, com freqüência, financiados por grandes e poderosas instituições, eles vivem num mundo bem diferente daquele onde trabalha seu colega pescador. Nos intervalos para o café, eles conversam numa linguagem que o pescador não entende. Citam estudos cheios de equações que não fazem nenhum sentido para uma pessoa que nunca freqüentou um curso de estatística. Depois da reunião, o pescador volta para sua casa na ilha, enquanto a pessoa que estava sentada ao seu lado talvez vá pegar um vôo para uma conferência em Washington ou Manila.

Terroristas ecológicos? Eduardo Abudeye, presidente da Cooperativa de Pescadores da ilha Isabela, que conta com 200 sócios, representa o setor pesqueiro na junta participativa. Sua tarefa é defender os interesses de pessoas que foram desmoralizadas não só nos círculos conservacionistas, mas também na imprensa internacional. Ele se sente acuado e ameaçado, convencido de que as cartas já estão definidas contra ele.

Imagem removida.

Em Puerto Ayora, uma representação heróica do pescador de Galápagos mascara a situação real dos homens que vivem da pesca naquelas águas imprevisíveis.

Abudeye está furioso. Já é suficientemente ruim ser um estranho numa mesa de negociações, mas a coisa não pára aí. Ele relatou com emoção uma visita que recebeu de uma equipe de jornalistas europeus. “Eles convidaram um grupo de pescadores para uma cerveja e, então, foram todos para o cais tirar fotos. Todos estavam alegres. Dois meses depois, recebemos um exemplar do jornal deles. O título em cima da foto era, ‘Terroristas ecológicos’.”

É doloroso ter uma imagem ruim. Porém, em última instância, disse Abudeye, “nós não comemos uma imagem, comemos o fruto de nosso trabalho”. Seu verdadeiro problema é o que ele percebe como falta de poder, em particular quando comparado aos, em suas palavras, “homens de roupa branca” que controlam o setor de turismo de grande escala. Ao contrário dos pescadores, eles contam com a influência econômica e política para obter o que desejam. E ele considera isso injusto.

“Há estudos científicos não realizados por pescadores que mostram que os barcos de cruzeiro de turistas são os maiores causadores de danos na reserva marinha”, disse ele. “Mas ninguém quer falar sobre isso.”

Ele chega a acusar alguns barcos de cruzeiro de levar seus clientes para fazer mergulho, uma atividade atualmente proibida dentro da reserva marinha, até que regras e diretrizes sejam estabelecidas para regular essa prática. “E onde fica o respeito à lei?” pergunta ele. Em contraste, quando um pescador é pego pescando pepinos-do-mar ilegalmente, “somos todos denunciados”.

“O fato de alguns desrespeitarem a lei não deveria prejudicar a imagem de todos nós. Numa casa sempre há um irmão que se comporta mal, e o mesmo acontece no setor pesqueiro.”

Ele conclui: “No dia em que representantes dos setores pesqueiro e de turismo se sentarem numa mesa de negociação e discutirem quais são as melhores opções para a proteção da reserva marinha de Galápagos, sem que nenhum lado leve vantagem sobre o outro, nesse dia nossos problemas vão terminar”.

Simplesmente realistas. Abudeye também desconfia dos cientistas, que segundo ele produziram toneladas de estudos caros e geraram poucos resultados. Seguindo a mesma linha de raciocínio, ele questiona o programa financiado pelo BID, que, afirma, está gastando uma quantia desproporcional em barcos de patrulha e equipamentos para fazer cumprir as regulamentações. “Se há algum patrulhamento a ser feito, nós, pescadores, podemos nos encarregar disso”, diz ele.

E desconfia das conversas sobre atrair os pescadores para atividades relacionadas com o turismo que estão sendo planejadas para o futuro, como o mergulho e a pesca esportivos. Onde ele arrumaria dinheiro para comprar um barco novo, motor e o equipamento de que iria precisar? “Eu não sou contra mudanças”, disse. “Só estou sendo realista.”

Para ele, realismo significa reconhecer que a pesca é uma atividade digna, que não vai desaparecer. Ele quer que as autoridades aprovem uma técnica de pesca chamada espinhel (“long-line”), que permitiria que os pescadores aumentassem sua produção dentro de limites sustentáveis. A captura mais garantida de pescado, disse ele, faria com que 30% a 40% dos pescadores desistissem da pesca de pepinos-do-mar. Ele também quer que seja concluído o centro de processamento e armazenagem de peixes financiado pelo BID, que permitiria que os pescadores obtivessem preços melhores para o que pescassem.

E quanto à biofilia? Claramente, Eduardo Abudeye tem outras coisas em mente além da reverência pela natureza. Mas, sempre otimista, Edward O. Wilson provavelmente ressaltaria que os pescadores passam a vida em contato pessoal com a natureza e que seu sucesso depende de um conhecimento que não pode ser adquirido em livros e salas de reunião. Se, em algum ponto, seu conhecimento também puder lhes garantir o sustento, é bem possível que uma ética de conservação genuína venha a aparecer.

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