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Água a que preço?

Será que existe um preço justo para a água encanada?

A questão é mais complicada do que parece, sobretudo quando o comprador não tem dinheiro de sobra.

Algumas pessoas acham que a água, que é um dos bens mais básicos, deveria ser como o ar puro e o calor do sol -- algo que todos deveriam ter de graça. Dizem que simplesmente não é justo cobrar água de famílias pobres, que normalmente já lutam com dificuldades para pagar a comida, a roupa e a satisfação de suas outras necessidades essenciais.

Evidentemente, a água começou a ter um preço no exato momento em que as primeiras comunidades agrícolas passaram a controlar o acesso a nascentes situadas em lugares estratégicos. O surgimento de aglomerados urbanos e cidades no mundo antigo exigiu grandes despesas coletivas em poços, aquedutos e cisternas. Já em nossa era, a combinação de agricultura industrial e expansão urbana transformou a água em um bem de alto valor em muitas partes do mundo.

Atualmente, a maioria das pessoas compreende que a captação e distribuição da água acarretam custos, mas continuam a discordar sobre o quanto os consumidores de baixa renda devem pagar por ela -- se é que devem pagar alguma coisa. Os desacordos são particularmente fortes nos países em que grandes segmentos da população ainda vivem sem água corrente em casa -- categoria que inclui todos os países da América Latina e do Caribe.

Nesses países, tradicionalmente a água tem sido considerada como um serviço básico, no mesmo plano da saúde ou da educação, fornecido pelo Estado e custeado com as receitas gerais de impostos. As tarifas, quando aplicadas, tendem a ser mais baixas que o custo real da distribuição da água, e muitas vezes não são arrecadadas de forma coerente. Além do mais, tipicamente as redes de água alcançam apenas os segmentos das classes média e alta da população, primariamente nas áreas urbanas. Os déficits crônicos nas receitas fiscais nacionais impedem a expansão para as áreas não atendidas e restringem ao mínimo os gastos feitos com a manutenção e o controle da qualidade.

Como resultado, vastos segmentos da população têm que encontrar outros meios para conseguir água potável. Alguns se arriscam a beber de correntes contaminadas ou de poços primitivos e muitas vezes o preço pago é a própria saúde. Outros fazem ligações clandestinas e ilegais à rede pública de água. Mas cedo ou tarde a maioria acaba pagando para comprar água de fornecedores particulares, legais ou ilegais, que obtêm gordos lucros transportando água de caminhão ou carroça para os bairros mais pobres. Diversos estudos mostram que os preços cobrados por esses intermediários podem ser até 30 vezes o que pagam as pessoas cujas casas estão ligadas à rede pública.

Os lucros da venda de água aos pobres são tão substanciais que o setor está começando a atrair as grandes corporações. Em maio, por exemplo, a subsidiária brasileira da Nestlé, um dos gigantes no ramo dos produtos alimentícios, entrou no mercado local de água engarrafada com um produto chamado Nestlé Pure Life. Embora se pareça muito com a água mineral engarrafada que há muito é oferecida em restaurantes e em supermercados orientados para pessoas de maior poder aquisitivo, a Pure Life é diferente. É extraída dos reservatórios locais de abastecimento, tem um preço agressivamente baixo e, de acordo com o material de divulgação da empresa, é comercializada especificamente "para atender às necessidades das pessoas que em seu dia-a-dia encontram dificuldade em ter acesso a água de qualidade".

Em resumo, com poucas exceções, o acesso à água de torneira na América Latina é marcado por uma ironia gritante. As pessoas que estão ligadas à rede de água -- e que na maioria dos casos conseguiriam facilmente pagar por ela -- pagam pouco ou nada para tê-la. Aquelas que não estão ligadas e que têm rendas muito baixas acabam pagando quantias exorbitantes.

Atualmente, muitos governos estão tentando corrigir essas distorções mediante a revisão dos serviços públicos de água. Embora as abordagens à reforma variem consideravelmente de país para país, elas têm em comum o compromisso de aumentar a auto-suficiência financeira dos serviços de água com a redução do déficit existente entre os custos da produção e a receita das tarifas. (Ver o artigo "Água desperdiçada", neste número.)

Mas, enquanto essas reformas estão sendo debatidas nos parlamentos e em conferências, as comunidades locais de países tão diferentes como o Haiti e a Argentina tentam resolver a situação por conta própria. Cansadas de esperar pela chegada em seus bairros de água grátis ou altamente subsidiada e depois de gastar quantias intoleráveis para adquirir água de vendedores particulares, essas comunidades estão encontrando maneiras criativas de ter acesso a serviços de água tarifados a um preço razoável. Ao transformar em realidade essas idéias, elas forçam as autoridades a reconsiderar muitos dos pressupostos nos quais se baseiam o funcionamento dos serviços de água e a eqüidade do preço das tarifas.

A solução do Haiti.
Talvez não exista um ambiente mais promissor em matéria de desafios a esses pressupostos do que a capital do Haiti, o país mais pobre do hemisfério ocidental. Embora os lençóis de água ao redor de Porto Príncipe sejam mais do que suficientes para abastecer os 2 milhões de moradores da cidade, apenas 10% das famílias locais têm ligações de água em casa. A empresa do serviço público de água, CAMEP, está fortemente endividada e parou de fazer a manutenção de muitos dos pontos de abastecimento público da cidade.

De acordo com Bernard Gay, diretor do Groupe de Recherche et d'Echanges (GRET), uma fundação francesa de pesquisa que há anos vem trabalhando com o problema da água no Haiti, um vasto sistema clandestino de distribuição de água para atender às necessidades dos 90% da população da cidade que não estão ligados à rede da CAMEP. Os operadores desse sistema dependem de poços privados e de caminhões de distribuição, que vendem água aos proprietários particulares de tanques. Os proprietários de tanques revendem depois a água em pequenas quantidades a indivíduos ou famílias a preços que variam entre US$3 e US$5 por metro cúbico, contra US$0,5 por metro cúbico que a CAMEP cobra de seus usuários.

"No passado, os funcionários da CAMEP nem sequer se aventuravam a entrar nas favelas que rodeiam Porto Príncipe", disse Gay em um recente seminário sobre o tema na sede do BID em Washington, D.C. Como resultado, os moradores das favelas, além de pagar mais pela água, tinham ainda de carregá-la por longas distâncias em áreas sem ruas pavimentadas.

Desde 1996, especialistas da GRET vêm trabalhando com a CAMEP e grupos comunitários de 14 dos distritos mais pobres de Porto Príncipe para encontrar meios alternativos de fornecer um serviço de água confiável e a preço acessível. Com o uso de recursos doados pela União Européia e pelo governo francês, as comunidades adotaram o que é visto como um conceito radical. Em vez de esperar que a CAMEP amplie o serviço de água para os seus bairros, elas pedem apenas a instalação de uma única tubulação de acesso com medidor, que pára na entrada de seu distrito. Daí para a frente, as comissões de água eleitas por cada comunidade assumem plena responsabilidade pela distribuição da água a diferentes pontos do bairro e pela arrecadação do pagamento.

As comissões, integradas por líderes das igrejas, de associações e grupos políticos do bairro conseguiram posição legal que lhes permite funcionar essencialmente como empresas públicas. Elas firmaram contratos com empresas de obras locais para a instalação de tubulações simples para a distribuição de água, mantendo tanques e pontos de abastecimentos onde a água é vendida aos consumidores que enchem seus baldes e outras vasilhas. Contratam ainda indivíduos para administrar os pontos de abastecimento, manter a rede de distribuição e cobrar as tarifas. Exige-se das comissões que usem auditores externos e que produzam um relatório financeiro anual, que é distribuído aos moradores do bairro e às autoridades da CAMEP.

O acerto financeiro é direto. As comissões pagam à CAMEP uma vez por mês pelo volume de água entregue no ponto de acesso ao distrito. A CAMEP cobra US$0,30 por metro cúbico de água e as comissões a revendem aos moradores por cerca de US$1,00 por metro cúbico. "Trata-se de um preço bastante significativo para os moradores dessas favelas", diz Alexandre Brailowsky, que foi diretor de campo da GRET quando os projetos estavam sendo implantados. "Mas é bem menos do que os US$3-US$5 que os fornecedores particulares de água cobram."

A cobrança de US$1,00 não é arbitrária. Visa cobrir, além das tarifas da CAMEP, o custo de administração e manutenção da rede de distribuição, o pagamento dos salários dos trabalhadores e a poupança para reinvestimento na ampliação dos serviços. Também se destina a gerar uma margem de lucro de 17%. "O lucro é a parte crítica do sistema", afirma Brailowsky. "Permite que as comissões financiem outros serviços solicitados pela comunidade, como obras de saneamento ou instalações esportivas."

Até a presente data, as comissões de água nos 14 distritos estabeleceram 70 pontos de abastecimento, construíram inúmeros tanques e colocaram perto de 20 km de tubulações, de acordo com os funcionários da GRET. Cerca de 150 mil moradores, mais da metade do total da população desses distritos, estão sendo atendidos pelos sistemas. Todo mês, as comissões de água arrecadam cerca de US$20.000 em receita e as vendas estão numa curva ascendente.

É grande a popularidade das comissões de água junto aos moradores, os quais, na maioria dos casos, agora fazem apenas uma breve caminhada para comprar água a uma fração do preço que costumavam pagar. Além disso, as comissões são entusiasticamente apoiadas pela CAMEP, para a qual representam uma solução bem-vinda ao que era considerado um problema insolúvel. Ao contrário de muitos dos usuários tradicionais da CAMEP, as comissões mantêm um registro perfeito do pagamento de suas faturas e representam uma fonte crescente de receita para o serviço.

De fato, a CAMEP persegue agora ativamente uma estratégia de expansão do serviço para 60 outros bairros de baixa renda ao redor de Porto Príncipe com base na experiência das comissões de água. Este trabalho faz parte de um programa maior para melhorar os serviços de água e saneamento da cidade que está sendo financiado com um empréstimo de US$55 milhões do BID, aprovado no ano passado. Cerca de US$10 milhões desse montante se destinam ao financiamento de projetos de extensão semelhantes aos descritos acima.

"As comissões de água demonstraram que são um caminho eficaz e financeiramente auto-sustentável de fornecer um serviço confiável de água nesses bairros", declara Fabrice Henry, especialista de desenvolvimento municipal do BID, que ajudou a organizar o empréstimo. "Elas provaram também que até mesmo os grupos de renda mais baixa pagarão por um serviço que lhes poupe tempo e dinheiro e que os fornecedores de serviço de água podem esperar receitas modestas mas confiáveis desse tipo de sistema. Pretendemos replicar a experiência em projetos financiados pelo BID."

Engenharia social.
Por que as comissões de água estão conseguindo sucesso em um ambiente tão pouco propício?

Um dos fatores óbvios é o acesso ao capital necessário para fazer face ao custo inicial da organização do sistema de água e da construção da infra-estrutura física necessária. Nos projetos de Porto Príncipe, financiados pela União Européia e pelo governo francês, cada sistema precisava de cerca de US$62.000 para ser implantado, ou cerca de US$19 por usuário potencial de água. O empréstimo do BID ajudará a cobrir os custos de capital em 60 distritos que hoje estão sendo estudados pela CAMEP.

Esses custos iniciais incluem tanto o hardware como o software, para usar uma metáfora do mundo da informática. O hardware -- planos técnicos, tubulações, medidores de água, equipamento para escavar valas -- é relativamente fácil de se obter quando há recursos e responde por cerca de 60% do total do custo do projeto.

Um pré-requisito muito mais desafiador para o sucesso, segundo Brailowsky e funcionários do BID, é o "software", ou todos os fatores humanos, culturais, legais e políticos que se devem somar na administração de um serviço financeiramente auto-sustentável em bairros pobres. "Como outras áreas marginalizadas e empobrecidas, esses distritos de Porto Príncipe eram muito politizados e tinham numerosos grupos de interesse com agendas conflitantes", afirma Brailowsky. Os esforços para a introdução de um serviço como o de água podem ser facilmente sabotados se todos os grupos não o apoiarem plenamente. Se acreditarem que o serviço não reflete os seus interesses, alguns moradores poderão exigir água grátis, intimidar os empregados do sistema de água ou até mesmo cometer vandalismos contra o equipamento instalado. Em muitos países pobres, esse problema é agravado pela relutância da polícia em entrar nas favelas mais pobres e perigosas. (Ver o artigo "Vocês fornecem as tubulações, nós cavamos as valas", neste número.)

Gerar consenso entre todos os participantes nesses bairros pobres requer uma "engenharia social" sofisticada. Brailowsky e outros especialistas em desenvolvimento usam este termo para descrever a tarefa de trabalhar com grupos locais na criação de estruturas e regras administrativas em que todas as partes interessadas possam tomar decisões e administrar um serviço.

Em Porto Príncipe, funcionários da GRET e das ONGs locais que eram conhecidos e que desfrutavam da confiança dos moradores dos bairros abrangidos pelo projeto desempenharam esta tarefa de mediação. Fabrice Henry do BID diz que o sucesso dos projetos de expansão futura depende em grande parte da capacidade e disponibilidade de ONGs que possam desempenhar esta tarefa vital nas novas comunidades.

Brailowsky adverte que nem mesmo as entidades externas mais persuasivas têm êxito quando os moradores locais não estão determinados a lutar pelo serviço. "Quando se tratou de conseguir água, sentimos que todos esses grupos estavam dispostos a colocar de lado as suas diferenças e dar apoio às comissões. Os projetos não teriam tido êxito se este consenso não existisse."

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