O negócio das microfi nanças está em expansão, os países crescem e se estabilizam, e os produtos básicos que exportamos são vendidos a bom preço. Abrem-se os mercados internacionais de capital, chegamos a Wall Street e descobrimos os instrumentos mais engenhosos da engenharia financeira nas mãos do Citigroup, Morgan Stanley, Deutsche Bank e Standard & Poor’s. Por que o endividamento hipotecário do grande sócio do Norte teria que nos preocupar? Se perguntarmos a uma galinha, sua resposta – correta demais – seria “CLO”.
O tom era de franca comemoração no dia 3 de junho de 2008 na sede da administradora de fundos Blue Orchard Finance em Genebra, Suíça. Nessa noite, o Financial Times e a Corporação Financeira Internacional entregavam seus prêmios ao banco sustentável, e uma operação montada pelo Blue Orchard e pelo banco de investimentos Morgan Stanley para emprestar dinheiro à indústria microfinanceira acabava de ganhar o prêmio concedido ao “negócio sustentável do ano”.
A operação, conhecida como BOLD2 (além de signifi car “audaz” em inglês, é também a sigla de Blue Orchard Loan for Development ), havia dado o que falar ao ser lançado no mercado em abril de 2007. Era uma obrigação de empréstimos colateralizados (Collateralized Loan Obligation ou CLO) estruturada pelo Morgan Stanley para emprestar quase US$110 milhões a 20 instituições microfi nanceiras selecionadas pelo Blue Orchard em 12 países, entre eles Colômbia, Nicarágua e Peru.
Não era a primeira vez que um grupo de instituições microfi nanceiras se associavam sob o guarda-chuva de uma CLO para conseguir financiamento nos mercados internacionais de capital. Nem era a primeira CLO para as microfi nanças e nem sequer se tratava da primeira operação BOLD do Morgan Stanley e do Blue Orchard. Ambos já haviam unido forças para estruturar uma colocação semelhante de títulos lastreados por empréstimos a instituições microfi nanceiras em 2006.
Mas a engenharia fi nanceira do Morgan Stanley havia criado dessa vez mecanismos de currency swap (câmbio de divisas) que permitiam que mais de 60% das obrigações fossem colocadas em moedas locais, incluindo sóis peruanos e pesos colombianos. E era a primeira vez que uma classifi cadora de risco de nível mundial – a Standard & Poor’s – classifi cava uma emissão de dívida para microfinanças. Só esse fato bastava para atrair os melhores investidores institucionais.
E assim foi. Os títulos de BOLD2 foram colocados em menos de um mês, e entre seus 21 investidores havia bancos, seguradoras e fundos mútuos, ou seja, o alto escalão das finanças corporativas. Mas a verdade era que nessa noite em Genebra, exatamente quando o BOLD2 recebia o prêmio dado ao negócio sustentável do ano, seu negócio já não era sustentável. De fato, não o era já fazia vários meses.
Justos por pecadores
Não deixa de ser irônico que o mercado tenha começado a minguar quase imediatamente depois da colocação dos títulos do BOLD2. “Nós já não estamos investindo em papéis de dívida”, diz Paul di Leo, sócio gerente do Grassroots Capital Partners e Presidente do fundo de investimento em microfinanças Gray Ghost Fund, acrescentando que sua empresa tinha essa política já fazia 18 meses. Uma fonte próxima ao Morgan Stanley reconhece que o BOLD2 não poderia se concretizar hoje e que tampouco
teria podido se concretizar na segunda metade de 2007.
“O mercado se congelou abruptamente”, diz Di Leo. Várias CLO programadas no início de 2007 não chegaram a se materializar, e pelo menos uma delas, que foi lançada e começou a ser colocada no mercado, permaneceu vários meses aberta, sem conseguir completar a colocação.
A verdade é que o BOLD2, o maior êxito de engenharia financeira em matéria de microfinanças, foi também um dos últimos, junto com a colocação pública de ações (initial public offering, IPO) do microbanco mexicano Compartamos. Ambos os negócios foram anunciados em abril de 2007, e desde então, 16 meses mais tarde, ainda não apareceram imitadores.
O Morgan Stanley chegou a criar uma unidade de microfi nanças quando se deu conta da oportunidade que se lhe apresentava com suas operações BOLD. Mas nos últimos meses, essa unidade começou a explorar novos produtos, após se convencer de que a oportunidade dos CLO se fechara.
Causas? Principalmente a crise de superendividamento hipotecário nos Estados Unidos, que começou a ficar evidente na segunda metade de 2007 e que em poucos meses provocou a renúncia dos presidentes do Citigroup e do Merrill Lynch, assim como a quebra do Bear Stearns, o quinto banco de investimentos dos Estados Unidos.
Certamente os empréstimos hipotecários salvaram o sistema financeiro americano após a explosão da bolha de investimento em alta tecnologia no final do ano 2000. “As casas que salvaram o mundo” foi a manchete de capa da revista The Economist. Mas o excesso de dinheiro nas mãos dos bancos e a manutenção da alta no preço das habitações provocaram uma nova bolha em substituição à anterior. Os bancos se mobilizaram para oferecer créditos hipotecários de alto risco conhecidos como subprime porque contemplaram clientes de baixa solvência com altas taxas de juros e polpudas comissões bancárias. Os clientes se endividaram, achando que poderiam pagar sua dívida hipotecária vendendo a casa com um ganho semelhante ao que se vira em anos anteriores. E como a dívida hipotecária pode ser vendida na forma de bônus ou titularizações de crédito, um alto volume de obrigações subprime foi transferido para fundos de investimento e outros investidores institucionais.
Desse modo, a crise hipotecária de 2007 se desfez quando os investidores perceberam que aumentava a morosidade e as taxas de execução, mas demoraram a se dar conta devido à crescente automatização dos mercados de valores e uma abundância de liquidez sem precedentes. Não ajudou o fato de terem os bancos, ao começar a perceber a situação de premência de fundos, recorrido a mecanismos como as obrigações hipotecárias colateralizadas similares ao negócio montado para a indústria microfi nanceira pelo Morgan Stanley e Blue Orchard mas lastreada em habitações.
A evidência de que bancos e fundos de investimento haviam comprometido seus ativos em hipotecas de alto risco causou uma contração do crédito (o já famoso credit crunch) e uma espiral de desconfiança entre os investidores. Ao terminar 2007, o Citigroup anunciou perdas de US$6 bilhões e o Merrill Lynch reconheceu que tinha empréstimos incobráveis quase no valor de US$8 bilhões. Se os gigantes desabavam, quem iria depositar sua confiança e seu dinheiro em microfinanceiras desconhecidas dos mercados emergentes?
A outra face da moeda
Especialistas e investidores concordam que a contração dos mercados de dívida estruturada para as microfinanças não tem relação nenhuma com a qualidade dos ativos da indústria. “A verdade é que microempresários e microfinanceiras não são clientes subprime mas sim clientes prime”, enfatiza Tomás Miller, especialista em microfi nanças do Fundo Multilateral de Investimentos (Fumin) do BID. Os ativos subjacentes da indústria continuam tão fi rmes como sempre, concorda Paul di Leo, da Grassroots Capital Partners. A maior cautela para investir em microfi nanças é a cautela que existe agora em relação a todos os investimentos, porque todo o mercado se contraiu, e isso não depende da
qualidade dos ativos de uma indústria em particular. O aumento relativo das taxas de juros que se percebe hoje, acrescenta, é produto de uma liquidez mundial menor, depois de vários anos de muita liquidez.
“Simplesmente há uma percepção de risco maior por parte dos investidores”, concorda uma fonte próxima do Morgan Stanley. “Quem ontem poderia ter fi cado contente com 12% de margem de lucro, agora quer 25%, e as instituições microfi nanceiras não estão dispostas a pagar juros tão altos.
As CLO e outras operações de engenharia financeira estruturadas pelos magos de Wall Street ajudaram a melhorar a imagem de marca da indústria, explica Di Leo. Deram visibilidade e legitimidade às microfi nanças como ator capaz de representar de igual para igual nos mercados internacionais de capital. Foram úteis como ferramentas de relações públicas, mas seu súbito fim não impactou de forma visível a indústria. As instituições microfinanceiras continuam tendo acesso ao capital de que necessitam para realizar seus negócios. “A maior parte da acumulação de fundos provém de fontes locais”, explica Di Leo. Um participante da premiada operação do Blue Orchard e do Morgan Stanley compartilha sua opiniã “As IMF receberam fundos locais e muitas já estavam bem abastecidas de fundos quando o crédito se contraiu”, afirma. “As CLO ajudam a diversificar as fontes de financiamento e estimulam os investimentos além-fronteiras, mas não faltou capital para as instituições microfinanceiras da região.
No geral foi positivo durante o auge fugaz das microfinanças nos mercados internacionais de capital. Enquanto algumas instituições microfinanceiras lançavam suas ações na bolsa ou estruturavam complexas operações de engenharia financeira na Wall Street da mão de endinheirados banqueiros de investimentos, as agências doadoras e fundos de investimento social imediatamente começaram a examinar o que teriam ficado fazendo com seus fundos. Teriam se tornado irrelevantes? Teriam que se reinventar? Haviam ficado doando recursos a instituições financeiras que não buscavam o desenvolvimento mas sim o lucro e que além disso cobravam juros mais altos que os dos bancos comerciais?
O auge e a queda da dívida estruturada na indústria microfinanceira durante 2006 e 2007 “nos faz voltar a concentrar-nos nas bases dessa indústria”, diz Kate McKee, do CGAP. “Talvez agora volte a ser bom fixarnos nos ativos subjacentes e comprar diretamente dívida corporativa de instituições microfinanceiras”.
Mas outra CLO? “Se os mercados voltarem”, suspira com nostalgia um banqueiro de investimentos que participou de uma das operações, “oxalá!”